Infância, de Graciliano Ramos

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Nesse romance, Graciliano Ramos mostra os problemas e as mazelas de um menino que cresce em meio ao choque com o mundo que o cerca.

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”Sou hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos (…)’’

Manoel de Barros

Tentar tanger o passado através da memória é capcioso, já que a memória é mutante; não permanece no patamar originário, tornando-se um amálgama, seja pela perspectiva do outro, seja pela infiltração do sonho…  Assim, chafurdar-se na sombra da infância para orquestrar um conjunto de experimentações e impressões que afetaram (e afetam) na (des)construção da percepção é o que Graciliano Ramos faz no seu livro Infância (1945).
Como é inerente a presença de fissuras na captação do passado, Graciliano enfrenta o objeto “apreendido ” e suas oscilações pelo véu ficcional; retirando o viés autobiográfico, de sentido unilateral e injetando a dimensão de um registro lapidado e inventivo.  “A memória não é pura, vem misturada com a invenção”, como diz Lygia Fagundes Teles.
A oscilação traiçoeira que a lembrança provoca é articulada como um dos pontos de construção da narrativa, ou seja, as dificuldades de uma (re)constituição completa do passado remoto são explicitadas em algumas passagens do livro, como forma de aliar o leitor àquela estória e, de certa maneira, desculpando-se, melhor, justificando-se por uma não abordagem mais clara; sempre retomando à precariedade das lembranças.

Desse antigo verão que me alterou a vida restam ligeiros traços apenas. E nem deles posso afirmar que efetivamente me recorde. O hábito me leva a criar um ambiente, imaginar fatos a que atribuo realidade. Sem dúvida as árvores se despojaram e enegreceram, o açude estancou, as porteiras dos currais se abriram, inúteis. É sempre assim. Contudo ignoro se as plantas murchas e negras foram vistas nessa época ou em secas posteriores, e guardo na memória um açude cheio, coberto de aves brancas e de flores. A respeito dos currais há uma estranha omissão (…). Certas coisas existem por derivação e associação; repetem-se, impõem-se – e, em letra de fôrma, tomam consistência, ganham raízes. (…) Reunimos elementos considerados indispensáveis, jogamos com eles, e se desprezamos alguns, o quadro parece incompleto. “

infancia02A infância, em geral, é inaudita, já que a perspectiva infantil é permeada de silêncios; tornando as crianças “marginalizadas”, no sentido de suas subjetividades serem invisíveis aos olhares, por vezes, totalitários das “pessoas grandes”. Uma realidade miúda que é vista com olhos amargos. Sendo o caso do menino de Infância, cujo mundo é solitário. E esse menino apreende tanto tal desdém que se admira com as outras formas de olhar; olhares mais benevolentes.

Na presença de meu pai, a fala da personagem seria gentileza indireta. Julgava-me indigno de atenção’”

A criança solitária e sem nome (Graciliano não nomeia seu narrador-personagem) é uma exímia observadora. Não absorve o que se apresenta de maneira desenfreada, mas filtra para melhor refletir. O menino, mesmo com pouquíssima idade, 6 anos, debruça-se sobre a realidade imposta e não se conforma como ela é moldada. Um caso que se enquadra nesses termos é quando o pequenino se inquieta com a concepção de inferno que sua mãe oferece.

O inferno era um nome feio que não devíamos pronunciar. Mas não era apenas isso. Exprimia um lugar ruim, para onde as pessoas mal-educadas mandavam outras, em discussões. E num lugar existem casas, árvores, açudes, igrejas, tanta coisa, tanta coisa que exigi uma descrição. Minha mãe condenou a exigência e quis permanecer nas generalidades. Não me conformei (…)”

Esse e outros atos de rebeldia recebiam, por vezes, respostas físicas dolorosas, pois os que possuíam autoridade se irritavam com indagações e mais indagações, não gostando de tais desconfianças no que se exprimia em mecanismos dogmáticos.

“(…) Minha mãe curvou-se, descalçou-se e aplicou-me várias chineladas. Não me convenci. Conservei-me dócil, tentando acomodar-me às esquisitices alheias. Mas algumas vezes fui sincero, idiotamente. E vieram-me chineladas e castigos oportuno”

Por vezes, tais audácias não eram externadas, pois já se previa certo cerceamento. Mas a não exteriorização de inquietudes não significava abatimento; apresentando, às vezes, uma domesticação para os outros, para melhor se articular. A manobra elaborada pela criança, para se esquivar das amarras, evidenciava ainda mais seu grau de solidão em relação aos seus questionamentos.
Desta forma, a criança é uma vítima. Submetida àquelas engrenagens que coíbem e punem. Sem alternativas, senão ser fiel a si mesmo, enclausurando-se em sua confusão sem suporte. A atriz Liv Ullmann, numa entrevista, fala, dentre outras aspectos, da criança indefesa e vitima genuína, dizendo: “A criança não pode fazer escolhas, razão pela qual ela é vítima e por quem tenho empatia”.
O maior tormento no mundo da criança de Graciliano emerge quando o inevitável na educação básica formal surge: a convivência com as letras. Sempre atento à oralidade da vida interiorana, quando a criança se depara com a palavra escrita/falada da “escola” e as discrepâncias que se configuram acerca da palavra falada que o construiu até ali, a confusão que já era borbulhante, atinge seu auge e eclode dentro da cabecinha em formação.
A aprendizagem primeira da língua nos seus moldes convencionais veio através do patriarca temeroso, que mostrou uma face mais afável (por vezes essa maneira quase aprazível mostrava sua vertente conhecida: a severidade) no quesito “ensino das letras”, já que desejava o forte vinculo de seu filho com tais “seres”. Pois para o contexto interiorano da época, homem sabido e de prestígio era o que sabia ler e escrever; tornando a aprendizagem das letras um status, já que isso era privilégio de poucos. As letras eram uma arma de poder.

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Ilustrações: Darcy Penteado

Mas, apesar da não rejeição ao ensino, todo aquele aparato básico da Língua Portuguesa chegava à criança como um turbilhão; jorrando de maneira arbitraria o que se deveria apreender, não moldando a inserção à aprendizagem de maneira não homogenia, não se atendo ao ritmo de cada um.

Enfim consegui familiarizar-me com as letras quase todas. Aí me exibiram outras vintee cinco, diferentes das primeiras e com os mesmo nomes delas. Atordoamento, preguiça, desespero, vontade de acabar-me. Veio terceiro alfabeto, veio quarto, e a confusão se estabeleceu, um horror de quiproquós”

A captação do ensino pelos mecanismos opressores da escola, no que diz respeito à imposição das formalidades, é torturante e atrofiante para uma criança e suas potencialidades, já que a escola, à época (e agora) é adestradora, não respeitando as idiossincrasias. Empurrando o conteúdo programático que não pode se deter em exceções nem à capacidade de captação (não levando em consideração a faixa etária).

Foi por esse tempo que me infligiram Camões, no manuscrito. Sim senhor: Camões, em medonhos caracteres borrados – e manuscritos. Aos sete anos, no interior do Nordeste, ignorante da minga língua, fui compelido a adivinhar, em língua estranha, as filas do Mondego, a linda Inês, as armas e os barões assinalados. (…) Abominei Camões”

Com essa não adaptação à escola, o menino não conseguia envolver-se no discurso “doutrinário”, fadigando-se nas aulas, Concebia, assim, a escola como prisão, cerceadora de liberdade, um meio de punição que os adultos impunham às crianças. Tendo como consequência a não alfabetização plena em meados dos seus nove anos.

O lugar de estudo era isso. Os alunos se imobilizavam nos bancos: cinco horas de suplício, uma crucificação. Certo dia vi moscas na cara de um, roendo o canto do olho, entrando no olho. E o olho sem se mexe, como se o menino estivesse morto. Não há prisão pior que uma escola primária do interior. A imobilidade e a insensibilidade me aterraram (…)”

Por fim, o menino só vai se interessar pelas letras, pela leitura, especificamente, quando ele mesmo descobre essa maravilha. Livre de imposições, o pequeno encontra ao acaso um “folheto de capa amarela e papel ordinário” intitulado O Menino da Mata e o seu Cão Piloto. Ler seu folheto escondido por se tratar de uma história renegada, não tendo afeição e aceitação na seara tradicional. Tendo como iniciação da vida literária um romance ”marginalizado”, como ele próprio. E assim começa realmente sua paixão pelas letras em geral (depois desse percurso árduo, escrevera com afinco também). Estava, enfim, faminto!

Arranjava-me lentamente, procurando as definições de quase todas as palavras, como quem decifra uma língua desconhecida. O trabalho era penoso, mas a história me prendia, talvez por se tratar de uma criança abandonada. Sempre tive inclinação para as crianças abandonadas, No princípio do romance longo achei garotos perdidos numa floresta, ouvindo gritos de lobos. As narrativas de d. Agnelina referiam-se a pequenos maltratados que se livravram de embaraços, ás vezes venciam gigantes e bruxas”

A Infância de Graciliano revela o significante democrático que o escritor alagoano utiliza, fazendo da escrita popular e não restritiva, no sentido de não empregar uma linguagem rebuscada que evoca rejeição. Sendo isto e também pelo que foi exposto o que torna este romance primoroso, delicado e reflexivo.

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