A grande jornada de Hermann Hesse

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Os romances de Hermann Hesse falam sobre autoconhecimento, algo que perdeu seu significado original e foi sendo substituído pela autoajuda, receitas prontas  e conselhos úteis escritos sob medida.

hhQuem leu algum livro de Hermann Hesse deveria lê-lo novamente com o passar dos anos para ver as mudanças que a vida vai provocando em nós. Hesse falava ao espírito inquieto que busca o sentido da dualidade, que descobre-se incompleto e procura elevar-se na sua incompletude. Não existem respostas fáceis, nem absolutas, mas  parece haver um ponto de convergência para todas as coisas.

Ele foi um romancista e poeta alemão nascido em 1877 em uma família muito religiosa de protestantes missionários, que haviam pregado o cristianismo na índia.  Chegou a freqüentar o seminário protestante mas teria sido expulso, e ao passar para a escola secular também não se adaptou tendo abandonado os estudos. Tornou-se um autodidata, trabalhou como livreiro e operário e resolveu dedicar-se à literatura e foi fortemente influenciado pelas religiões orientais. Outro fato que marcou sua vida foi a Primeira Guerra Mundial; ele não era favorável  ao militarismo e ao nacionalismo que cada dia mais se fazia sentir na Europa daquele período. Terminada a guerra publicou seu primeiro grande romance de sucesso em 1919, Demian. A obra mostrava o interesse crescente do escritor pela psicanálise de Carl Jung.

Hesse deixou a família nesse mesmo ano e se mudou para o sul da Suíça, onde se dedicou a escrever Siddarta (1922), obra influenciada pelas culturas hindu e chinesa e que traduzida para a língua inglesa marcou de forma definitiva a geração Beat norte americana. Embora Hesse se inspirasse nas religiões orientais, ele deixava evidente que os mestres têm suas limitações e que cada um deveria caminhar com suas próprias pernas, fazer suas próprias descobertas.

A história começa na infância do personagem Emil Sinclair que como o autor, vive em um lar extremamente religioso e apesar de admirar este mundo luminoso da religião, sente-se diferente, deslocado, como se algo estivesse faltando. A vida de Sinclair muda quando aparece Demian, um aluno da sua escola que o ajuda com Franz Kromer, um menino valentão que o incomodava. Demian acaba por motivar as mudanças na maneira de pensar de Sinclair, mas ele foi na verdade apenas a centelha que despertou o que ali já existia, levando Sinclair a confrontar o mundo sombrio dentro de si. Então ele se lança em uma jornada pessoal,  com todo sentimento de solidão que tal empreitada possa causar. Estamos sozinhos ao fazer a opção por se embrenhar em nossos próprios labirintos e encarar nossos demônios e fantasmas, ora ganhando, ora perdendo batalhas.

Há uma passagem interessante onde Demian diz que o demônio também é Deus, já que não há como uma força tão grande ser apenas um lado da moeda. Isto é o que Sinclair deve procurar, uma aceitação do todo, sem restrições quanto a algum lado.

“A única realidade é aquela que se contém dentro de nós, e se os homens vivem tão irrealmente é porque aceitam como realidade as imagens exteriores e sufocam em si a voz do mundo inteiro. Também se pode ser feliz assim; mas quando se chega a conhecer o outro, torna-se impossível seguir o caminho da maioria. O caminho da maioria é fácil, o nosso é penoso. Caminhemos.”

“Não creio ser um homem que saiba. Tenho sido sempre um homem que busca, mas já agora não busco mais nas estrelas e nos livros. Começo a ouvir os ensinamentos que meu sangue murmura em mim”

“O que hoje existe não é comunidade, é simplesmente rebanho. Os homens se unem porque têm medo uns dos outros e cada um se refugia entre seus iguais: rebanho de patrões, rebanho de operários, rebanho de intelectuais…E por que têm medo? Só se tem medo quando não se está de acordo consigo mesmo”

fullEm seu outro romance, O Lobo da Estepe escrito em 1927, o personagem Harry Haller é um cinqüentão alcoólatra e intelectualizado que não se encaixa na sociedade.  O romance relata o conflito entre  o simbolismo da vida selvagem e o absurdo da vida civilizada. O lobo da estepe caminha errante e solitário, e angustiado não consegue escolher seu caminho entre a vida burguesa que despreza e sente necessidade e a liberdade que anseia, mas teme. Não é possível  conciliar o lobo e o homem, se um prevalece o outro sente-se incomodado. Seu tormento chega a tal ponto que Haller não vê outra saída senão esperar pela morte e pensa com freqüência em suicídio. Ele costuma caminhar à noite por ruas e tabernas e em uma de suas andanças se depara com um letreiro que diz:  “Teatro Mágico – Entrada só para os raros.”  Então conhece Hermínia, Maria e Pablo, e através deles e do Teatro Mágico descobre um mundo de pequenos prazeres que lhe abrem as portas da percepção.  Ao final do Lobo da Estepe, uma outra passagem é auto explicativa:  “Delicioso suicídio! Você se arrebenta de rir!”.

“Religião e pátria, família e Estado careciam de significação para mim e já nada me importava; a presunção da ciência, das profissões, das artes me causava asco; meus pontos de vista, meu gosto, todo o meu pensamento, com o que em outras épocas brilhara como homem bem conceituado, tudo estava agora abandonado e embrutecido e causava suspeita a muita gente. Se em todas as minhas dolorosas transmutações adquirira algo de indizível e imponderável, caro tivera de pagá-lo, e em cada uma delas minha vida se tornara mais dura, mais difícil, mais solitária e perigosa”

“Há momentos em que toda uma geração cai entre dois estilos de vida, e toda a evidência, toda a moral, toda salvação e inocência ficam perdidos para ela”

“Aprenda a levar a sério o que merece ser levado a sério, e a rir de tudo mais!”

Hesse ganhou o Nobel de Literatura em 1946 com o livro O Jogo das Contas de Vidro, seu último trabalho, um romance contemplativo considerado sublime por Thomas Mann. O jogo seria uma atividade lúdica, mas puramente intelectual,  unindo a beleza da arte à magia formal das ciências exatas, onde se encontram  a matemática de Pitágoras, a gnose, o humanismo hermético do renascimento, ecoando Descartes e Leibniz. Hesse faleceu em 9 de agosto de 1962 vítima de uma hemorragia cerebral, durante o sonoO belo poema abaixo faz parte do Jogo das Contas de Vidro.

 “Nenhum ser nos foi concedido. Correnteza apenas

Somos, fluindo de forma em forma docilmente:

Movidos pela sede do ser atravessamos

O dia, a noite, a gruta e a catedral

 

Assim sem descanso as enchemos uma a uma

E nenhuma nos é o lar, a ventura, a tormenta,

Ora caminhamos sempre, ora somos sempre o visitante,

A nós não chama o campo, o arado, a nós não cresce o pão

 

Não sabemos o que de nós quer Deus,

Que, barro em suas mãos, conosco brinca,

Barro mudo e moldável que não ri nem chora,

Barro amassado que nunca coze

 

Ser enfim como a pedra sólido! Durar uma vez!

Eternamente vivo é este o nosso anseio

Que medroso arrepio permanece apesar de eterno

E nunca será o repouso no caminho”

 

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