A primeira vez em que li O Horla (segunda versão), de Guy de Maupassant, estava dentro de um ônibus, viajando para o interior. Era noite; o livro iluminava-se graças à solitária lâmpada que fica sobre a poltrona. Os poucos passageiros dormiam, sem suspeitar que a minha imaginação queimava de medo por mim e por eles, enquanto as luzes da estrada passeavam na escuridão do ônibus, revelando sombras distorcidas e risadas quase imperceptíveis. Tive certeza de que o Horla estava entre nós, esperando o momento de assumir a dianteira na evolução. Foi uma noite eterna.
O Horla (segunda versão) conta a história de um homem assombrado por alguém invisível, uma criatura que mora na sua casa e espia todos os seus gestos. O narrador confidencia tais angústias para um diário e as frequentes oscilações do seu humor não nos permitem lhe dar credibilidade absoluta. Não sabemos se o homem está envolvido por uma atmosfera paranoica ou se existe realmente algo a perseguir os seus passos. Às vezes, o narrador consegue se afastar do adversário invisível, mas sempre retorna, em um misto de fascínio e terror. A trama se constrói com lerdeza, como qualquer boa história de terror. Os elementos fantásticos são acrescentados aos poucos, cada personagem oferece novas pistas e o medo surge ao natural, sem parecer forçado. Na melhor tradição do conto, Maupassant lança a isca para o leitor e espera ele ser fisgado pela curiosidade, até não conseguir se afastar da história sem saber como terminará.
Cada vez que leio O Horla (segunda versão), eu me surpreendo com nuances diferentes, que não estavam ali nas outras leituras. É um conto que se auto-renova e nunca fecha as interpretações. Maupassant mostra que o fantástico está sempre caminhando ao nosso lado, mas insistimos em encarar a segurança monótona da realidade. No entanto, basta prestar atenção no mundo ao redor e veremos inúmeras maravilhas e improbabilidades. É uma lição preciosa: desviar o olhar um pouco da rotina já permite toda uma série de experiências.
Guy de Maupassant não é um escritor, é um nervo literário exposto. Passou boa parte da sua vida lutando contra a loucura, por conta de uma sífilis nunca tratada. Escrevia para não enlouquecer, em uma corrida contra a insanidade progressiva que acabou lhe confinando em um hospício. O Horla teve duas versões: na primeira, o narrador contava a história para outras pessoas, mas não era possível passar o medo com a mesma efetividade e, por isto, o escritor realizou a segunda versão, fazendo o terror surgir aos poucos em um diário. É impossível ler O Horla sem imaginar se a criatura invisível não é a loucura espreitando cada um de nós, no silêncio da noite, folheando livros, tomando água e esperando o momento de assumir as rédeas. Não sabemos se nós, leitores invisíveis, não estamos lendo o diário e matando aos poucos o narrador com a nossa presença intrusa. O fato é que o Horla está sempre entre nós.
E talvez esteja atrás de você AGORA.
Trecho do conto ‘O Horla (segunda versão)’, de Guy de Maupassant
Durmo – muito tempo – duas ou três horas – depois um sonho – não – um pesadelo apodera-se de mim. Bem sinto que estou deitado e que durmo… Sinto-o e vejo-o… e também sinto que alguém aproxima-se de mim, observa-me, apalpa-me, sobe em minha cama, ajoelha-se sobre meu peito, toma meus pescoços em suas mãos e aperta… aperta… com toda sua força para estrangular-me. Debato-me, imobilizado por essa atroz impotência que nos paralisa nos sonhos; quero gritar – não posso – quero mover-me – não posso – tento, com esforços pavorosos, ofegando, girar, derrubar esse ser que me esmaga e que me sufoca – não posso! De repente, desperto, apavorado, coberto de suor. Acendo uma vela. Estou sozinho.
Trecho do conto ‘Uma relação indecorosa’, de Gustavo Melo Czekster
Imagine uma flor de algodão. Redonda, perfeita, mantida em torno de precária estabilidade. O tremeluzir dos fios roçados pela respiração. A angústia com que mantém a coesão, o cuidado desmedido com que se comporta a sua estrutura. Com a flor de algodão desenhada na cabeça, imagine agora a navalha súbita do vento. Frio ou quente, pouco interessa: ele atravessará os fios com a concretude da morte, separando-os da coexistência que até então os unia, dividindo-os em dezenas de fios. Juntos, eles tinham um propósito; separados, contudo, tornam-se fios sem sentido ou futuro, tendo que viver sozinhos neste mundo de ventos selvagens, movimentos, instabilidades.
Gustavo Melo Czekster é advogado e mestre em Literatura Comparada pela UFRGS. Seu primeiro livro de contos, O homem despedaçado, foi publicado em 2011 pela editora Dublinense.