O horla é uma narrativa testemunhal de um homem que está internado em uma casa de saúde; ele tem como ouvintes o alienista Marrande, três médicos e quatro sábios das ciências naturais.
“A mínima coisa contém um pouco de desconhecido.”
Gustave Flaubert
Henry René Albert Guy de Maupassant iniciou seus estudos acadêmicos na Universidade de Direito em Paris. Maupassant, todavia, não exerceu a carreira de advogado e se rendeu à produção literária, publicando sua primeira obra em 1875, no Almanaque Lorraini. O autor francês escreveu contos, romances, poemas, textos para o teatro, crítica de arte e crônica. Foi discípulo de Gustave Flaubert, que lhe deu os primeiros ensinamentos de observação de ambiente. Contudo, sua literatura foi altamente influenciada pelo pessimismo filosófico de Schopenhauer, bastante difundido na época.
Lembremos que o autor estava em plena metade do século XIX, tempo de um verdadeiro boom da psiquiatria, do espiritismo, do darwinismo, da hipnose, entre outros. A obra de Guy transita por esses assuntos, principalmente seus contos de cunho fantástico. Em suas short stories, o autor faz uma relevante reflexão da sociedade a da loucura humana. Os contos fantásticos de Maupassant se ajustam no minucioso conceito de Tzvetan Todorov em sua Introdução à Literatura Fantástica:
“Em um mundo que é o nosso, que conhecemos, sem diabos, sílfides, nem vampiros, se produz um acontecimento impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Quem percebe o acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o que são, ou o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da realidade, então esta realidade está regida por leis que desconhecemos. Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginário, ou existe realmente, como outros seres, com a diferença de que rara vez o encontra.” (página 15)
Seu conto fantástico mais conhecido é O horla, que se desdobra em duas histórias. Há O horla (primeira versão – 1886) e O horla (segunda versão – 1887). Neste breve texto, comentarei sobre o primeiro, que é a origem do caso clínico do protagonista. O horla é uma narrativa testemunhal de um homem que está internado em uma casa de saúde; ele tem como ouvintes o alienista Marrande, três médicos e quatro sábios das ciências naturais.
O doente, magro cadavérico de 42 anos, relata a respeito de sua vida tranquila e de sua lucidez, até acontecer algo inusitado. No outono do ano anterior à sua baixa na casa de saúde, começou a sentir sintomas estranhos: inquietação nervosa, mau humor e insônia. Ao chamar um médico, ele recomendou que tomasse brometo de potássio e duchas. Assim fez, porém dormia excessivamente e sentia-se fraco. Notou que seu cocheiro apresentava sintomas semelhantes aos seus. Ao perguntar para o empregado o que estava acontecendo, Jean lhe disse que sofria do mesmo mal do patrão. O homem chegou a cogitar que se tratava de uma epidemia de febre, por morar próximo ao rio.
Numa noite, percebeu algo que, segundo ele, era inverossímil. Observou que a jarra de água, que sempre mantinha cheia, estava vazia quando acordou. Pensou ser sonâmbulo. Fez inúmeros testes, durante muitas noites e, em todas as ocasiões, a água desaparecera. A partir daí, o homem passa a acreditar que há um ente que o acompanha, um ser invisível que bebe de sua água e que o espreita durante o sono. Esse ser sai dos limites do quarto. Na primavera, quando passeava pelo jardim, o protagonista avista a seguinte imagem:
“Ora, uma manhã, quando passeava junto do canteiro das roseiras, eu vi, vi nitidamente, bem perto de mim, o caule de uma das mais belas rosas quebrar-se como se uma mão invisível a tivesse colhido; em seguida, a flor seguiu a curva que teria descrito um braço ao levá-la até a boca, e ficou suspensa no ar transparente, sozinha, imóvel, assustadora, a três passos dos meus olhos. Desvairado, lancei-me sobre ela para agarrá-la. Nada encontrei. Ela havia desaparecido. Então, fui tomado de uma cólera furiosa contra mim mesmo. Não se admite que um homem sensato e sério tenha semelhantes alucinações!” (página 78)
E mais situações acontecem por toda a casa:
“Para começar, surgiam todos os dias entre os criados discussões furiosas por mil causas aparentemente fúteis, mas, a partir de então, cheias de sentido para mim. Um copo, um belo copo de Veneza, quebrou-se sozinho, em pleno dia, no armário da sala de jantar. O camareiro acusou a cozinheira, que acusou a roupeira, que acusou não sei quem. Portas que tinham sido fechadas à noite estavam abertas de manhã. Roubavam leite, todas as noites na copa.” (página 79)
O narrador acredita que tais episódios ocorridos no lar são arte do ser invisível, o qual ele batizou de Horla, esse estranho ser inacessível, que se apoderava da vida dele. Até que um dia o “enxergou”. Assim faz o relato:
“[…] Atrás de mim, um armário muito alto com um espelho que me servia todos os dias para me barbear e me vestir, e onde eu tinha o hábito de me olhar, da cabeça aos pés, sempre que passava pela sua frente. Fingia então estar lendo pra enganá-lo, pois ele também me espiava; e, de súbito, senti, tive a certeza de que ele lia por cima do meu ombro, de que ele estava ali, roçando a minha orelha. Levantei-me, virando-me tão depressa que quase caí. Pois bem!… Enxergava-se como em pleno dia… e eu não me vi no espelho! Ele estava vazio, claro, cheio de luz. Minha imagem não estava lá… e eu estava diante dele… Via de alto a baixo o grande vidro límpido! E olhava para aquilo com um olhar alucinado, não ousando avançar, sentindo que ele estava entre nós e que me escaparia de novo, mas que seu corpo imperceptível havia absorvido o meu reflexo.” (página 81)
Essa é a última declaração que o doente faz para a comissão que o escuta. O enfermo tem o apoio e a credulidade do alienista Marrande, que realizou a experiência da água em outras residências e constatou que o mesmo “fenômeno” ocorra em tais casas, sendo que três vizinhos do narrador encontravam-se no mesmo estado de loucura de seu paciente. Sobre o Horla, o protagonista diz:
“Quem é? Meus senhores, é aquele que a Terra espera depois do homem! Aquele que vem nos destronar, nos subjugar, nos dominar e, talvez, alimentar-se de nós, como nos alimentamos dos bois e dos javalis. Há séculos ele é pressentido, temido e anunciado! O medo do invisível sempre perseguiu nossos pais. Ele chegou.” (página 83)
O combalido ainda fala sobre uma matéria lida no jornal que dizia acontecer algo semelhante no Brasil, mais especificamente na província de São Paulo. No término do conto, há a curiosa e significativa fala do doutor Marrande: “Não sei se este homem é louco ou se ambos o somos… ou se… se o nosso sucessor chegou realmente.” (página 84) Como se vê, até mesmo o alienista é induzido pelo paciente e se ajusta às suas ideias.
No conto de Maupassant existem algumas referências muito simbólicas, sendo o espelho e o duplo as mais significativas. Pierre Brunel, no Dicionário de Mitos Literários, diz:
“Maupassant deu ao duplo sua forma canônica, realizando ao mesmo tempo, a façanha de jamais defini-lo por seu nome clássico. Ele é designado por toda uma série de nomes que apontam para esse sentido sem mencioná-lo.” (página 279)
Assim, o nome Horla, que analisado linguisticamente, significa presente, mas não aqui; o que está fora e não está dentro, justifica o desvario do alienista. Todas as cenas, todas as descrições vivenciadas pelo narrador, não passam de delírio. Reforçando com o conceito de Todorov, o Horla é essa ilusão dos sentidos, um produto da imaginação. O duplo, o desdobramento da personagem serve para justificar o estado de insanidade do protagonista, porque, afinal, o que não está em mim, não sou eu.