“Meu, isso é muito Black Mirror”
Essa frase tomou as redes sociais e a vida real nos últimos meses de 2016. A série britânica Black Mirror já está em sua terceira temporada e atingiu um ápice de popularidade, junto da febre de isolamento e introspecção compartilhados via Facebook. Com 13 episódios marcantes (e um episódio inteiro do 30:MIN dedicado a pensar literatura perturbadora por causa da série), assistir a Black Mirror é brincar com os sentimentos mais íntimos e intrincados de cada indivíduo. Por isso, pensei em escrever reflexões sobre os episódios mais marcantes de série, pensando sempre em um autor que se relacione com a temática do episódio.
[contém spoilers]
O primeiro episódio da série conta a história de um sequestro. Mas não se trata de um crime qualquer: a princesa, muito querida pela nação, foi sequestrada e, para libertá-la, o Primeiro Ministro é desafiado a transar com um porco em rede nacional. A bizarrice da situação é levada ao extremo, principalmente quando a população passa a acompanhar as decisões do político e se posicionar a favor de que ele faça este sacrifício pela nação – mostrando como a contemporaneidade mistura a visão de líder político com herói grego. Não é apenas um líder, que tem família, limites. Ele é, antes, o líder que deve se arremessar no sacrifício para atender o que a opinião pública pede. A tensão escala até o ponto em que o Primeiro Ministro transa com o porco em rede nacional, um episódio absolutamente pavoroso.
A população não só fica acompanhando cada instante do freak show a sua frente como deixa de lado as tentativas de solucionar o crime. Trata-se de um exemplo perfeito do que Guy Debord, o pensador francês, tratou em A sociedade do espetáculo. Neste livro, em 221 teses, ele constrói e consolida o conceito de “espetáculo” como resultado de uma vida social que deixa de existir e é substituída por representações. Isto é, não há mais o diálogo com aquilo que é, mas sim com o que parece ser. O distanciamento da população dos meios de produção faz com que haja, também, o deslocamento da noção de autenticidade e de percepção da realidade. Em detrimento da produção e da construção, existe o consumo do que parece ser a realidade. Ou seja, nasce, assim, a sociedade fetichista, que observa tudo e consome cada pedaço dos fetiches que aparecem.
Neste primeiro episódio, está aí a grande cutucada: ninguém estava, de fato, preocupado com a situação absurda que havia sido criada. Está todo mundo enfurnado em casa, de forma que ninguém nota que a princesa havia sido libertada uma hora antes. E, com um pouco de psicanálise de botequim, é plausível pensar que se não foi notado, é porque não era o foco, não era o objetivo. Ninguém queria saber da princesa: o que interessava era saber se o Primeiro Ministro ia dar uma com o porco para todo mundo ver. O diálogo era com a narrativa, pouco havia de diferença entre as reações acompanhando o líder máximo do país fazendo o inimaginável e o comportamento de quem assiste ao último capítulo de uma novela. Ele o faz e colhe os louros políticos de seu heroísmo às avessas. Sua vida pessoal, no entanto, naufraga. Mas como isso fica longe das câmeras, o fetichismo do espetáculo não captura e tudo segue parecendo ser e estar bem.
Este episódio é um dos mais fortes da série, exatamente por mostrar o quanto o outro vem se tornando cada vez mais “hologramático”, digital e distante. A força tecnológica não é apenas democratizadora de espaços e acessos, mas também um elemento de virtualização de sentimentos e diminuição de empatia. Se nada parece de verdade, só a sua individualidade é real, seus desejos, anseios e percepções. O distanciamento dos outros, em suma, nos tornaria capazes de ver, entretidos, um homem transando com um porco em rede nacional como se fosse um simples reclame de uma oferta no supermercado.