Quando se pensa em Hannah Arendt, algumas peças-chave vêm à cabeça: filosofia, teoria política, liberdade, judaísmo, Heiddeger, nazismo, totalitarismo, banalidade do mal, condição humana. Tudo isso esteve presente na formação de sua persona e, principalmente, de sua obra. Mas houve uma Hannah para além disso, tão viva hoje quanto seu legado, uma Hannah pouco conhecida: a poeta.
A poesia, cujo material é a linguagem, é talvez a mais humana e a menos mundana das artes, aquela cujo produto final permanece mais próximo do pensamento que o inspirou. A durabilidade de um poema resulta da condensação, de modo que é como se a linguagem falada com extrema densidade fosse poética por si mesma.
Johanna Arendt nasceu em 1906, em uma Alemanha em tempos de paz. Descendente de famílias tradicionais judaicas, sua infância se deu dentro da classe média, ou dos chamados, na época, “judeus educados”. Foi criada nos moldes alemães de cultura e política. Carregou por toda a vida marcas de suas perdas precoces, seu pai e seu avô paterno faleceram quando tinha cerca de três anos.
Aos 18 anos, Arendt decidiu cursar filosofia e ingressou na Universidade de Marburg, onde conheceu Martin Heidegger, com quem iniciou uma relação amorosa fadada ao impossível. O romance secreto com um homem mais velho, seu professor, já casado e pai de dos filhos, teve grandes influências em sua formação a longo prazo. Ainda mais porque o fim do relacionamento não impediu que a relação de amor e admiração entre os dois continuasse sendo cultivada, e isso ao longo de cinquenta anos. Registrada em todos esses anos de trocas de correspondências, que foram reunidas e publicadas no Brasil sob o título Hannah Arendt e Martin Heidegger: Correspondência 1925/1975. Na política e na filosofia, os dois caminharam para lados distintos, enquanto Hannah, sendo judia, fugia do nazismo que dominava a Europa, o filósofo erguia o braço com a suástica na lapela.

O término do relacionamento dos dois coincidiu com a elaboração de sua tese sobre o “Conceito de amor em Santo Agostinho”, duramente criticada, tornando os últimos anos da década de 20 extremamente turbulentos, mas que acabaram sendo poeticamente produtivos para Hannah, que já se arriscava nos versos mesmo antes de Heidegger.
Canção da Noite
E se profundamente nos cansamos,
No colo noturno da noite
Esperamos por um suave consolo.
Esperando, podemos perdoar
Toda dor, toda aflição.
Nossos lábios começam a se fechar –
Sem som o dia inicia sua ascensão…
Seu gosto pela poesia e suas experiências pessoais constam em uma de suas biografias, Nos passos de Hannah Arendt, da historiadora francesa Laure Adler.
Cansaço
Tarde caindo —
Um suave lamento
soa nos pios dos pássaros
que convoquei.
Muros cinzentos
desmoronam.
Minhas próprias mãos
encontram-se novamente.
O que amei
não posso manter.
O que me cerca
não posso deixar.
Tudo declina
enquanto cresce a escuridão.
Não me domina —
deve ser o curso da vida.
A questão existencialista, tão cara a seus contemporâneos, o amor, um de seus objetos de estudo – o amor mundi – serviram de base e inspiração para suas produções poéticas. Hannah tentou se desvendar e revelar através da poesia, como também quis falar e calar o que fosse do mundo.