Confira cinco reflexões geradas pelas palestras de Helena Silvestre e Renata Gonçalves em evento organizado pela Boitempo sobre feminismo.
Contexto
Entre os dias 7 e 14 de março a editora Boitempo realizou uma série de debates relacionados ao Dia Internacional da Mulher. Entre temas como a origem da data, o marxismo e interseccionalidade, acompanhei a conversa sobre patriarcado, exploração do trabalho reprodutivo e caça às bruxas, com as escritoras e ativistas pelos direitos humanos Helena Silvestre e Renata Gonçalves.
Identificações me invadiram, provocações me moveram, questionamentos me despertaram a necessidade das palavras e gestos transformadores durante a conversa. Desde as primeiras falas de Helena, que abriu o debate logo após a fala da mediadora Samara Xavier e as contribuições poderosas de Renata, foi como se uma grande lista libertadora se planejasse diante dos meus olhos e ouvidos.
As inúmeras considerações surgidas na live estenderam-se em uma conversa que tive com Helena no começo de maio. Todos os ensinamentos que os dois acontecimentos trouxeram é de uma enormidade impossível de resumir em um texto.
Mas a mania de ter fé na vida e a teimosia dos que acreditam que todo dia é dia de transformar confirmam que um aprendizado por vez é muito melhor que se aquietar. Então, que se faça o poder da palavra, as provocações necessárias e suas mudanças.
Que usemos todos os espaços. Dos textos às conversas, dos eventos às pequenas e necessárias listas:
1- Refletir sobre o único pensamento visto como forma “correta” da vida se expressar
Na live, Helena contou como não se identificava com a visão acadêmica do feminismo, o que não quer dizer que o renegava, mas que sentia falta de uma visão menos ocidental e engessada, que abordasse os outros nomes do movimento, como o feminismo comunitário, o feminismo classista, o periférico, o afro-indígena e o libertário. Ainda que tenha se tornado militante muito jovem, aos 13 anos, conhecer mulheres negras e falar sobre trajetórias foi o que deu início ao seu trabalho de desconstrução e autoconhecimento.
Hoje, ela relata tal passagem da vida com a constatação de que “Quem fala melhor é quem vive”.
2- Divisão do trabalho é estabelecimento do poder
Os caminhos e transformações que marcam as lutas feministas nos últimos dois séculos são significativos, mas ainda esbarram em padrões que servem como manutenção da estrutura do sistema patriarcal e capitalista. A luta pela emancipação e o direito ao trabalho sobrecarregou principalmente as mulheres negras e mais pobres. Elas tiveram a carga de trabalho multiplicada ao se tornarem cuidadoras das casas de mulheres brancas e privilegiadas, quando estas saíam para trabalhar. Reconhecer os trabalhos inviabilizados nos dá a visão que precisamos para entender a próxima e necessária provocação, que é:
3– Em sociedades pré-capitalistas, o trabalho sempre foi visto como mercadoria
Em dado momento da live, Helena respondeu a uma pergunta sobre como somar à batalha contra a definição do trabalho como mercadoria. Ao nos dar uma análise ampla e histórica de mais uma dificuldade do sistema, mostrou que fomentar a luta contra a visão ocidental, engessada e imediatista das coisas é urgente.
Na precificação do trabalho na era capitalista, o esforço das mulheres negras e pobres, que cuidam da casa e das crianças de famílias privilegiadas, enquanto seus filhos muitas vezes passam o dia sozinhos, acaba sendo barateado na pirâmide social. O resultado dessa equação cruel pode ser resumido pela impactante afirmação de Helena de que ela cansou de ver mulheres da periferia morrerem sem saber o que são férias, desassistidas por um sistema falho e que insiste nas:
4- “Políticas públicas no Brasil são fracas e criadas por e para homens”
As mulheres que sustentam a base das coisas são as mesmas que estão sobrecarregadas e que, na pandemia, precisaram triplicar o trabalho para darem conta de suas tarefas. Com o grupo da escola feminista Abya Yala, criada pela própria iniciativa de Helena, ela se organizou para ajudar mulheres periféricas que viram suas rendas reduzidas ou até eliminadas desde o começo da pandemia, exercendo um trabalho afetivo em meio à sobrecarga comunitária que as políticas públicas falhas ignoram.
Não havia ainda compreensão suficiente para lutarmos por soluções sem a última provocação que Helena ofereceu à nossa conversa:
5- É preciso ler sobre o que não se toca
Ao fazermos isso, agigantamos os limites da nossa aprendizagem e empatia. Aprendemos além das salas de aula e vamos para as ocupações, as cozinhas, as casas, as filas, as bibliotecas comunitárias, os postos de saúde. Discordamos e reivindicamos, entendemos os diferentes cenários que compõem nosso território desigual.
Na mesma semana da live, comprei e li o livro da Helena, Notas sobre a fome (2021), indicado ao Jabuti. Depois do nosso encontro, ficou ainda mais nítido o poder da sua última observação: a leitura do seu livro é tocar o áspero das existências invisibilizadas e um acolher das dificuldades e das superações, dos cuidados, da sobrecarga de quem cuida e da solidariedade entre quem não tem nada.
É necessário ler, conversar e ouvir sobre o que não se toca.
É humano ouvir e dar voz a quem vive o que tanta gente não quer ver.
Créditos HL
Esse texto é de Débora Consiglio, teve revisão de Raphael Alves e edição de Nicole Ayres, editora assistente do Homo Literatus.