Helena Terra resenha seu conto predileto: ‘Menina a caminho’, de Raduan Nassar

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Foto-Helena-PB

 

Quando li, pela primeira vez, o conto Menina a caminho, de Raduan Nassar, estava em um aeroporto. O livro já estava comigo há uns dois ou três meses, mas eu esperava a hora de estar também a caminho de algum lugar para abri-lo. Como os outros dois livros dele, a capa era discreta, incapaz de revelar qualquer informação sobre o texto. Coisa que me fascina. Não gosto de ser previamente preparada para uma leitura ou induzida a uma interpretação por meio de imagens, prefácios, orelhas. Não que eu não os ache necessários e não admire os trabalhos, muitas vezes, geniais dos capistas. É uma questão pessoal. Antes de ler, me empenho para neutralizar ao máximo qualquer informação externa ao livro. Depois de lido, se eu tiver sido contaminada, examino cada detalhe e opinião a ele somados. Aí, a minha curiosidade cresce e corro atrás também das resenhas, dos artigos, da biografia do escritor etc. Portanto, quando li, pela primeira vez, o conto Menina a caminho, de Raduan Nassar, e isso foi no século passado, eu não sabia nada sobre ele, exceto de que era um Raduan Nassar, o que, para mim, já significava muito.

Escrito no início dos anos 60, publicado antes na Alemanha que no Brasil e narrado em terceira pessoa, o conto tem uma premissa bem simples: uma menina magricela e modesta percorre as ruas da pequena cidade em que vive. O ponto de partida é a saída dela de casa, sem pressa. O narrador não nos diz a idade exata que ela tem, para onde vai e nem porque vai. O foco está nas cenas corriqueiras que ela testemunha à medida que avança em seu percurso, as quais ela acompanha, atenta. São essas cenas e o que lhe absorve mais atenção, o recorte que ela faz de cada situação, que revelam quem ela é, como sente, que papel ocupa no meio social, o que a motiva e em que ponto está de sua infância. Nesse sentido, o narrador é hábil, direcionando o olhar da menina, ora para o mundo infantil, ora para o mundo adulto. E mesmo quando o leitor chega ao desfecho, e ela, então, de espectadora se torna protagonista, uma posição definitiva sobre a menina não nos é possível. Há mais de uma resposta e, por consequência, mais de uma pergunta. A mim, seduzem as duas, principalmente, quando tão mescladas e múltiplas.

 

Trecho do conto ‘Menina a caminho’, de Raduan Nassar

Descalços, sem camisa, os corpos arcados, os meninos arrastam os sacos, que puxam por um dos cantos com se os puxassem pela orelha. E a palha, com o movimento às vezes emperrado, vai estufando cada vez mais a barriga gorda do fundo dos sacos. Passando pro chão da terra, um dos meninos vê a menina acocorada, observando-os por sob a barriga abaulada de um cavalo, cujas rédeas estão amarradas numa das argolas chumbadas na guia.

 

Trecho do conto ‘E se quebrou’, de Helena Terra

Com o pé direito, a menina dobra a esquina. Dali para frente é só andar em linha reta quatro quadras, tendo o cuidado de olhar para os dois lados ao atravessar as ruas, de não falar com estranhos e de não se distrair em frente à loja de brinquedos. Na vitrine está a boneca que mexe os braços e a cabeça, usa avental e tem vassoura, ferro de passar roupa e espanador. Se não fossem as bolitas azuis de vidro e os cabelos loiros e cacheados, a boneca poderia ser filha de Socorro. Se ela própria não fosse a magricela que é, poderia também ser filha de outra mulher que não dormisse tanto e de um pai que trabalhasse menos.

 

Helena Terra mora em Porto Alegre. É jornalista, ilustradora e escritora. Seu primeiro romance, A condição Indestrutível de ter sido, foi publicado em 2013 pela editora Dublinense. O conto E se quebrou foi publicado no Jornal Rascunho.

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