Os contos do livro Fábrica de Heróis, do pernambucano de Yuri Pires, convidam os leitores à realidade para que possam descobrir porque os heróis não existem mais
Depois de estrear na literatura com o romance O Homem e o seu Tempo (2014), o escritor pernambucano Yuri Pires agora se aventura nas veredas do conto. Seu novo livro, Fábrica de Heróis (2016), disponível em formato digital pela Amazon, é composto por seis narrativas: “Fábrica de Heróis”, “O deserto”, “Pierrotraiser”, “O beco”, “A ilha”, “A bruxa”. Nesses enredos distintos, desfilam personagens aparentemente simples, mas que surpreendem com tanta complexidade interior que revelam.
As tramas podem se passar no interior de Pernambuco, no Recife, em São Paulo, em Belo Horizonte, num deserto ou numa ilha; podem ser regionais ou urbanas, mas, no fim, devido a já citada intensidade das personagens e também à riqueza das ações, seus contos ganham o espaço da universalidade. Conforme avançamos na leitura, fica nítido que não só a questão de ausência de heróis é recorrente nessas histórias, o tema relacionado à fuga também é. Em todas elas haverá, nem que seja de maneira metafórica, um “retirante”; seja ele de um lugar, de uma situação, de uma crença, de uma vida ou da morte. Acredite, em Fábrica de Heróis, a esperança pode ser uma enfermidade.
No primeiro conto, “Fábrica de Heróis”, temos o relato de um lixeiro que sonha ser gari de varrição. Este personagem de origem humilde que, no passado, foi vendedor de confeito, que ergueu muro, que carregou caixas na CEASA, se vê em estabilidade sendo lixeiro. Sua ascensão se daria no dia em que trabalhasse na varrição, pois assim não tocaria no lixo. Como ele mesmo diz: “Varrição é terra de lorde.” Depois, numa reviravolta narrativa, que ultrapassa os limites da realidade, esse homem se depara com o irremediável. Talvez seja como o próprio narrador fala: “Mundo acaba nada mesmo não, quem acaba é a gente, soterrado na própria merda a que gari nenhum virá limpar.” Ou:“A gente é merda nenhuma na escala da sujeira.”
“O deserto” é narrado em terceira pessoa. A história é curtíssima e descreve a exaustiva peregrinação de dois desertores pelo deserto. No trajeto, os batalhadores questionam suas ações contra os infiéis e os horrores da guerra. Ocorre nesse conto um diálogo de cunho filosófico religioso em que a própria existência de Deus é questionada. Lê-se: “Mas viste, como eu, os horrores da guerra, viste as mãos decepadas, as cabeças no chão separadas de seus corpos. Deus, se amor fora, já não o é, e, se acaso existir, esqueceu-se de nós, que vagamos pelo deserto inóspito.”
Em “Pierrotraiser”, um thriller criminal e psicológico, o leitor vai esbarrar com um jovem nada sociável, que odeia o carnaval. O homem visivelmente não superou algumas questões de seu passado, sejam de rejeição ou humilhação. À medida que o conto se desenrola, fica perceptível o delírio do protagonista, evidências de uma loucura que pode chegar às raias de 13 facadas de latente psicopatia. Eis um trecho:
“Enfim, para ele, não fazia sentido sequer pensar em estar com essas pessoas, mesmo que fosse uma vez por ano; mas havia uma exceção: Cecília. Como os demais, ela também o desprezara e, certamente, sequer lembrava-se dele. […] Entretanto, Cecília era diferente. Seu desprezo, e mesmo suas risadinhas quando ele passava, continham um pouco de pena, sempre um olhar um pouco envergonhado e sensível ao seu drama, talvez intimamente, desculpando-se pela sua ojeriza. Ele sabia e, desde então, masturbava-se pensando nela.”
No quarto conto, “O beco”, há a história de moradores de um cortiço. A narração centra-se na família de Dona Salomé, casada com Raimundo e mãe de dois filhos. Enquanto a mulher dá conta de sua vendinha, o marido se vira vendendo churros e cachorro-quente em porta de escola. A vida dessas pessoas será profundamente abalada quando, no beco, acontecer uma chacina.
“Aconteceu tudo muito rápido. No instante em que José chegou à mesa para despedir-se dos amigos, um carro parou à frente da mercearia cantando pneu. Dele desceram quatro homens altos, encapuzados, com rifles e metralhadoras e revólveres. Nada perguntaram. Nada explicaram. Gritavam, berravam ininteligivelmente. Os tiros abafaram os gritos de Salomé, deixando os três amigos no chão, irmanados pela poça de sangue que crescia no entorno de seus corpos.”
“A ilha” fala sobre os sobreviventes de um naufrágio. Neste lugar inóspito, uma pequena comunidade constrói pavimentos, esperando por futuros moradores. Essas pessoas vivem de expectativa, trabalho e observação. Elas aguardam os residentes de além-mar que, cansados de seus problemas insolúveis, ali construiriam uma nova sociedade, um novo mundo. O conto nos remete à obra de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo. Eis alguns trechos: “Se era preciso acabar com os problemas de mar-além, como a ilha podia bastar? E os habitantes de além-mar, que pensavam sobre?”; “Adélia acostumou-se a ser gruta dos prazeres alheios. Alheia a si, imaginava tempo que os povos além-mar libertavam-se da escravidão a que estavam submetidos e chegavam à ilha para inaugurar mundo novo.”; “Mundo Novo somos nós, a ilha basta!?”.
E na última narrativa, “A bruxa”, tudo começa com um trabalhador esperando por seu ônibus, numa manhã fria e de chuva fina. Devido a um acidente no coletivo, esse homem começa um insólito diálogo com uma senhora que o teletransporta para uma praia. Tudo leva a crer que o trabalhador passa por uma experiência de quase morte. Eis:
“Vamos embora, foi o que ela disse. Para onde, foi o que eu perguntei, e quando dei por mim estávamos à beira de uma praia desconhecidamente deserta. Assustei-me. Onde estamos, perguntei, e ela, sorridentemente cínica, onde você queria estar desde que levantou mais cedo. Era a primeira verdade que me dizia, e seriam muitas ainda antes do pôr-do-sol.”
Propositalmente, fui bastante concisa ao comentar os contos de Fábrica de Heróis. Não quero entregar o jogo, porque o livro é, de fato, surpreendente. O autor, nessas seis histórias, passeia por mais de uma modalidade do gênero narrativo. É possível identificar características do conto sócio-documental, de reflexão e também do fantástico. Dentro de tão distintas modalidades, ora encontram-se algumas passagens que se aproximam da doce prosa poética, ora da linguagem crua, afiada e sádica. Essa versatilidade das palavras traz à tona indagações de natureza filosófica “da hora” e muito necessárias. Cabe agora ao leitor juntar-se aos personagens, aos delírios e à realidade do livro para descobrir porque os heróis não mais existem.