Hilda Hilst e a arte de perder

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Lançado há pouco tempo, o livro de entrevistas com a escritora Hilda Hilst, Fico besta quando me entendem (Biblioteca Azul), é uma leitura altamente recomendável. Hilda, além de sua enorme habilidade com as palavras, tem histórias divertidíssimas e uma personalidade cujo impacto é inegável. Acho que se eu fizesse uma lista com os melhores “causos” que ouvi de outros escritores, ela estaria no topo como protagonista.

Dentre os diversos bons momentos do livro, um dos que mais me chamou a atenção foi a conversa com o jornalista e escritor José Castello. Nela, a autora comenta sobre o Potlatch, uma cerimônia de ameríndios, na qual eles demonstram seu poder através da destruição de suas riquezas. Isso mesmo: é considerado mais rico e poderoso aquele que consegue jogar ao fogo o maior número de joias, bens e outros tipos de posses. Aliás, a palavra Potlatch significa “o poder de perder”. É justamente o contrário de nossa lógica capitalista, na qual o acúmulo é a palavra de ordem quando se fala em riqueza.

Fico besta quando me entendem (Biblioteca Azul, 2013)
Fico besta quando me entendem (Biblioteca Azul, 2013)

Hilda enxerga semelhanças entre esse rito e a própria escrita. Quem conhece algo de sua biografia, sabe que demonstrar humildade não era exatamente uma de suas características mais proeminentes. As riquezas que “perde”, então, são seus livros: grandes obras que são lidas por muito poucos, ou quase ninguém. Obras perdidas por não receberem o devido valor.

Não é nada incomum ver escritores reclamando que suas obras deveriam ser mais valorizadas. Poucos são os que têm razão nessa afirmativa, como Hilda tinha. Mas não estou aqui para falar disso. Na verdade, essa história do Potlatch me tocou também em outro sentido: embora possa parecer absurdo queimar suas próprias riquezas, o oposto – o nosso costume de acúmulo – sempre me pareceu tão irracional quanto. Creio que entre morrer com dez milhões no banco e vê-los queimar em uma fogueira, eu ficaria com a segunda opção: pelo menos é mais divertido.

Mas com relação à escrita, essa metáfora também tem suas aplicações. Nós, escritores, sempre vemos nossos próprios textos como nossa riqueza. E, claro, não gostamos de vê-la “queimada”. Sempre achamos que nossos escritos merecem estar nas páginas de uma edição caprichada, lançada por uma grande editora, presente em todas as livrarias (de preferência nas estantes de destaque), lida por milhares de pessoas ao redor do mundo.

Hilda Hilst, na Casa do Sol, em Outubro de 1998 (Foto de Yuri Vieira)
Hilda Hilst, na Casa do Sol, em Outubro de 1998 (Foto de Yuri Vieira)

Isso muda de pessoa para pessoa (tem gente que adora publicar na internet), mas às vezes pode ser um pouco difícil você entregar um texto seu – como um conto, por exemplo – para um site ou blog. Pensar que aquelas palavras sobre as quais você tanto trabalhou estarão destinadas a, muito rapidamente, serem soterradas por outros posts: incluindo GIFs engraçadinhos, vídeos do Youtube, desabafos pessoais, propagandas de eventos e tudo o mais que a internet pode oferecer. Hilda não viveu essa fase de uso intenso da rede, mas creio que se via livros como forma de perder seus textos, blogs não seriam muito convidativos.

Eu sou um dos que sempre fugiram de publicar na internet. Não é uma ideologia arcaica isso, calma; é só uma falta de costume mesmo. Mais de uma vez comecei a escrever um conto para um site e acabei me apegando tanto a ele, que decidi reserva-lo para algum livro futuro. Uma sensação de “esse conto é bom demais para sair num site”. No fim, talvez tenha perdido várias boas chances, porque a verdade é que os livros de papel são mais “respeitáveis”, mais “duradouros” e mais “sérios” (as aspas são porque todos esses conceitos são questionáveis), mas o mundo virtual talvez possa alcançar mais leitores. No fim, ter seu post soterrado um tempo depois pode ser menos comprometedor do que ter seu livro na estante de uma livraria, “soterrado na horizontal” por tantos outros títulos.

Não pretendo desenvolver aqui esses temas de literatura versus mercado editorial, livrarias versus downloads, livro impresso versus ebook, grandes editoras versus canais independentes, futuro versus passado, etc etc. Acho que já temos número suficiente de especialistas desnorteados nesse meio. Só queria dizer que estou feliz de começar essa coluna aqui no Homo Literatus, de me colocar na posição de escrever regularmente para a internet. Poder “queimar” alguns textos, ao invés de acumula-los. Acho que, no fim, isso está mais para ganhar do que para perder.

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