O romance Noites de alface não deixa dúvida: Vanessa Bárbara é uma escritora competente, ágil e bem humorada
É muito difícil tecer qualquer comentário assertivo sobre Noites de alface, lançado pela Alfaguara. E de forma alguma tal dificuldade é sintoma de desqualificação do trabalho, mas o contrário: o livro da escritora Vanessa Bárbara é tão correto que fica difícil comentar.
A premissa da história é simples: Otto e Ada são casados há cinquenta anos e moram numa casa amarela que pertence a um lugarejo encravado num morro. A vida pacata dessa localidade é composta por pessoas comuns: o atendente da farmácia aficionado por bulas de remédios e natação, o carteiro relaxado (e seu substituto exemplar), a vizinha exotérica, a vizinha solteira e datilógrafa cheia de cachorros, um idoso que sofre de Alzheimer e sua filha e um casal recém-casado que mudou há pouco. Nas relações que tecem, a vida transcorre sem grandes percalços. Eis que Ada morre – e Otto se vê obrigado a interagir com os vizinhos.
Permeado de digressões que remontam a história de Otto e Ada desde o primeiro encontro até o último diálogo, ao longo do livro somos apresentados a um casal de idosos que se dedica a experiências culinárias (não muito bem sucedidas), documentários televisivos sobre animais, múmias, e, sobretudo a Otto, a leitura de romances policiais e programas sobre serial killers e detetives. Isto é, um casal que, depois de cinco décadas de convivência, é praticamente idêntico (“Ada tinha os cabelos curtos, era magra e gostava de couve-flor. Otto tinha os cabelos curtos, era magro e gostava de couve-flor”), muito embora guardem diferenças fundamentais.
Ada é expansiva e se relaciona com os vizinhos do lugarejo, repassando ao recluso e sisudo Otto os acontecimentos recentes. Dessa forma, portanto, somos apresentados também a uma situação específica do passado recente da comunidade que remonta os dias que antecedem a morte da Ada: um acontecimento que unirá toda a pequena comunidade num segredo que Ada não compartilhou com o marido.
É justamente no contato compulsório de Otto com seus vizinhos que pequenas particularidades começam a intrigá-lo: ele sabe que Ada escondia um segredo que compartilhava com seus vizinhos e por isso questionamentos amontoam-se: quem é o menino ruivo que aparece fantasmagoricamente? Quem é Eilinora e por que ela passa a roupa de todos e é tão bem paga se não tem desenvoltura alguma para a tarefa? Imbuído nessas pistas, Otto começa uma investigação para descobrir o que Ada não lhe contou.
Uma das principais características de Noites de Alface é transitar entre diversos estilos. O que se apresenta potencialmente como uma história dramática (morte da esposa, velhice e solidão) em pouco ruma para uma linguagem mais leve e humorada, explorando outros personagens que, afinal, constroem o painel no qual se desenvolverá a história. Na medida em que nos aprofundamos na idiossincrasia desses personagens, suas relações e conflitos, uma inesperada reviravolta muda o tom do livro para uma história detetivesca, flertando com o gênero tão apreciado por Otto.
Interessante notar que essa variação de estilos não é aleatória, sendo propositalmente vinculadas às principais características de Ada e Otto, ao redor dos quais gira a comunidade e seus personagens. Ada é expansiva, comunicativa e, de certa forma, envolve todos, trazendo-os a um contexto único que reproduz a Otto. Este, por sua vez, é mais sisudo e desconfiado, consumidor voraz de livros policiais e programas de investigação. Ou seja, essas mudanças de chave refletem a personalidade dos personagens.
O livro é muito bem executado e não deixa dúvida que Vanessa Bárbara é uma escritora competente, ágil e bem humorada, com sacadas que por vezes soam forçadas na boca dos personagens, mas que, no geral, funcionam e divertem. Aliás, os personagens de Noites de alface são bacanas e cumprem com suas funções narrativas numa história que não chega a cativar, mas é espirituosa e interessante ao dialogar com estilos diversos. No entanto, é difícil um parecer preciso sobre o trabalho, pois justamente por ser tão correto deixa a sensação de que falta alguma coisa – e, sem querer, os elementos positivos fazem as vezes de temperos que dão gosto a uma folha de alface.