O futurismo foi um movimento artístico de vanguarda europeia, surgido em 1909. Dali a pouco, o moderno samba urbano brasileiro se consolidava e não demorou a fazer troça.
Abre alas
O cenário é Rio de Janeiro no princípio dos anos 30: o jovem e boêmio Noel Rosa, entra no botequim Ponto de Cem Réis, em Vila Isabel. Rosa havia largado a faculdade de Medicina para se dedicar ao ramo musical, vender seus sambas, fazer serenatas e saltar de bar em bar, enquanto tocava com o seu grupo Tangarás.
O compositor tinha acabado de cair no gosto popular, aclamado pelo sucesso estrondoso de sua canção “Com que roupa”, que embalou o Carnaval de 1931, rendeu paródias, charges, crônicas e vendeu 15 mil cópias. Apesar da vida curta – morreu aos 26 anos, de tuberculose –, foi reverenciado como um gênio da música, compôs mais de 300 sambas e hoje está eternizado na história da música.
No Ponto de Cem Réis, conheceu Lamartine Babo, com quem se identificou de primeira e formou então uma profícua carreira musical, com direito a muita farra, bebedeiras e canções. Entre elas A. B. Surdo, uma marchinha humorada (ou maluca, como anuncia o subtítulo) que brincava com o movimento fundado por Marinetti.
A.B. Surdo
Na música, de melodia e letra extravagantes, o sambista zomba dos versos desconexos que se apropriam da velocidade, do non sense, do jeito de se comportar e de fazer versos da moda futurista.
É futurismo, menina,
É futurismo, menina,
Pois não é marcha
Nem aqui nem lá na China.
Ao mesmo tempo, essa brincadeira se estende ao Modernismo, movimento que se consolidava no Brasil e muitas vezes se confundia com o Futurismo, pois eram colocados no mesmo grupo de bárbaros e desvairados. Até mesmo Oswald de Andrade, em carta analisando Pauliceia Desvairada, aponta Mário de Andrade como futurista.
Conclusão: samba e cultura
A história do Samba e da composição de A. B. Surdo se confunde com a história do Modernismo da literatura brasileira, porque, assim como o movimento que surgiu em 1922, o samba urbano buscava exaltar a voz do povo, o retorno aos terreiros, a troça, a malandragem, o desvario da língua. É o próprio Noel Rosa que afirma:
“O samba evoluiu. A rudimentar voz do morro transformou-se, aos poucos, numa autêntica expressão artística, produto exclusivo da nossa sensibilidade. A poesia espontânea do nosso povo levou a melhor na luta contra o feitiço do academismo em que os intelectuais do Brasil viveram durante muitos anos ingloriamente escravizados. […] Não duvido que Bilac, se fosse vivo, tomasse o bonde do samba”.
De samba em samba, o gênero registrou nos mais diversos tons, de troça, revolta ou crítica, as mudanças sociais, culturais e polícias do Brasil, que era empurrado para o século XX.
Referências
LIMA, M. H.. Desordem, ordem e ambiguidade em três sambas de Noel Rosa. REVISTA LITERATURA EM DEBATE, v. 12, p. 35-56, 2018.
NETO, Lira. Uma história do Samba: origens. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.