O romance de Ana Paula Maia promove algumas das principais funções da literatura: o autoconhecimento e a investigação do caráter do ser humano
Carvão animal, de Ana Paula Maia, é um livro que tem potencial para deixar seus leitores angustiados, com o coração pulsando freneticamente a cada representação de homens que carregam o peso da existência e da falta de esperança de um futuro melhor.
Os personagens dessa obra literária não têm à disposição um leque de oportunidades que possibilitam uma vida agradável, longe de uma realidade claustrofóbica e sufocante. Tratam-se de homens comuns, duros e cheios de infernos particulares, os quais possuem caráter condicionado pela profissão que exercem em suas vidas, profissões estas que fazem com eles enfrentem a morte dia após dia.
Os nomes dos personagens são simples, o que representa também suas personalidades. Alguns mencionarei aqui, mas, evidentemente, não há espaço de falar de todos. Começo com Ernesto Wesley. Um bombeiro que se arrisca o tempo todo, corta ferragens em acidentes e tem de, muitas vezes, salvar pessoas de incêndios e até recolher corpos incinerados. Ernesto sabe que seu trabalho é salvar as pessoas da morte ou recolher os restos humanos das vítimas da morte. Menciona que ao ser humano, depois da morte por incêndio, resta apenas uma coisa na terra que possa dizer quem ele é: seus dentes. Todos os dias está disposto a se lançar para a morte, para morrer ou se salvar, pois sempre está quase sendo abocanhado pela morte. Desse modo, cuida bem de seus dentes, sabe que eles são um bem precioso, porque se um dia não escapar de morrer, não será um carvão animal, restarão apenas seus brancos dentes.
Temos também Ronivon, Palmiro e J.G, todos trabalham em Colina dos Anjos, crematório que também é chamado de “carvoaria”. Lá, todos têm uma ideia em fixa na mente: transformam o ser humano em pó, acabam com qualquer vestígio do(a) falecido(a), ou seja, acabam-se com as origens e as características. Sendo assim, o ser humano não pode mais ser distinguido como homem, mulher ou animal. Estes personagens contam com a morte para o sustento de cada dia, e sem a mercadoria de que necessitam para trabalhar (os mortos), não é possível sobreviver.
J.G merece um enfoque especial: ele tem medo de moer e queimar corpos, mas este é o único trabalho que conseguiu na vida. Não há perspectiva de vida para este personagem, rapaz negro que pesa toneladas. Foi espancado pela mãe e, por isso, seu corpo é repleto de cicatrizes e possui a boca deformada. A mãe, após matar a irmã de J.G a pancadas, foi presa. J.G foi criado por parentes de grau de consanguinidade distante, a eles sempre obedeceu prontamente, passou boa parte da vida recebendo ordens e se desculpando até pelo o que não tinha culpa. Por causa das pancadas que tanto levou, possui miolo mole, não raciocina direito e nem sabe ler e escrever bem, até sua voz é lenta e grave, como menciona o narrador do romance. J.G, na vida adulta, conseguiu emprego na Colina dos Anjos, mas mal tem onde morar.
Outro ponto interessante a mencionar é em relação à região de Alaurdes, onde se explora carvão mineral. Local em que homens mergulham nas trevas da terra, respirando pó de carvão. Estão sempre distantes da luz do dia. Personagens como Edgar Wilson trabalham nas minas e são irreconhecíveis, ou melhor, são todos iguais, revestidos de fuligem densa, encardidos, com doenças no pulmão, com aspecto murcho por causa da pele sulcada pelo tempo. São homens brutos, solitários e arredios que têm dificuldade de lembrar da cor do dia, pois vivem embaixo da terra. Nas minas, muitos acidentes acontecem: homens são soterrados e explosões podem acontecer. Desse modo, trabalhar nelas também é viver em confronto não só com a escuridão, mas também com a morte.
No romance de Ana Paula Maia, as vidas dos personagens são entrelaçadas, sempre em função da profissão, que os fizeram duros e até amorais. Suas realidades são repletas de cinzas e infernos particulares, não são tranquilas e belas de se admirar, pois a morte sempre ronda a todos, que são fortes, apesar de, aparentemente, não terem consciência disso.
Talvez fique a pergunta: se o livro trata da realidade nua e crua de homens brutos e duros, isso é literatura? Pois bem: sim, é literatura. A autora do livro, ao representar seus personagens, eleva a palavra ao nível da arte, não são apenas relatos concisos, como nos recortes de jornais, são mergulhos na alma humana relatados por meio da linguagem. Além disso, em Carvão Animal, Ana Paula Maia, promove algumas das funções essenciais da literatura: o autoconhecimento e a investigação do caráter do ser humano.