Segundo Huxley, “a felicidade não é atingida pela busca consciente de felicidade; ela é geralmente um subproduto de outras atividades.”
Decerto, dentre todos os romances escritos por Huxley, Admirável Mundo Novo é o mais popular. Sempre presente nas listas dos 100 melhores livros do século XX – e não raro entre os 10 primeiros -, a história de Bernard Marx e John, o Sr. Selvagem, publicada em 1932, atribuiu ao autor a posição quase mística de profeta. Mas, embora a manipulação genética para produção dos melhores fetos, o uso da tecnologia e do entretenimento como ópio contemporâneo e a redução do amor ao simples ato sexual (suficiente para acalmar circunstancialmente o corpo animal, mas não a totalidade da alma) sejam a nova realidade na consciência coletiva do século XXI, foi em um outro romance não tão conhecido que Huxley conseguiu captar ainda mais o caos existencial da modernidade.
Contraponto, publicado em 1928, situa-nos em um círculo de intelectuais numa Inglaterra entre guerras. No primeiro capítulo, somos convidados a mergulhar profundamente nas duas primeiras das várias mentes expostas ao longo da história: Walter e Marjorie. Esta, que largou o marido para fugir com Walter e agora espera um filho deste último, sente-se melancólica pela transformação do amante, cujas noites passa agora junto a Lucy Tantamount. Walter, contudo, sente-se sufocado entre o dever moral como futuro pai e promessas de um amor que já não sente por Marjorie e o instinto animal que o move aos encontros com Lucy. Aliás, esta dualidade – esta humana dualidade! – é o que mobiliza o romance de ideias que constitui Contraponto.
“O romance de ideias. O caráter de cada uma das personagens deve-se achar, tanto quanto possível, indicado nas ideias das quais ela é porta-voz. Na medida em que as teorias são a racionalização de sentimentos, de instintos, de estados de alma, isto é praticável. O defeito capital do romance de ideias é que somos obrigados a pôr em cena pessoas que tem ideias a exprimir, o que exclui mais ou menos a totalidade da raça humana – à parte apenas 0,01 por cento. Aqui a razão pela qual os romancistas verdadeiros, os romancistas natos não escrevem tais livros. Mas, ora! eu nunca pretendi ser um romancista nato.”
Se Fernando Pessoa, o ápice do Modernismo português, manifestou através dos heterônimos de sua obra a liquidez da verdade – ora por uma visão panteísta de Alberto Caeiro, ora por um futurista Álvaro de Campos, ora por um paganista Ricardo Reis, etc. -, pois a cada heterônimo convencia-nos de maneiras peculiares as diferentes faces que a verdade pode nos revelar, Huxley fez o mesmo em Contraponto.
Inspirado em si mesmo e em seu círculo de amigos intelectuais, listou os típicos arquétipos do homem urbano: no já citado Walter, aquele que sabe que está errado, mas, por conveniência, convence-se que está certo; em Marjorie, a mulher submissa cristã; em Lucy, a hedonista niilista (dir-se-ia puta); em Rampion, o bucolista crítico da vida cosmopolita; em Webley, o super-homem de Nietzche sedento por poder sob a máscara socialista de libertador dos oprimidos; em Illidge, o típico intelectual que culpa os ricos por todos os problemas de sua vida; em Spandrell, o niilista instável sem sentido existencial; em Burlap, o platonista hipócrita; em Philip, o que ignora totalmente a vida material e concentra-se no mundo intelectual. Todos estes personagens pensam que estão certos – e até nos convencem! -, mas logo o narrador transporta-nos para uma outra visão e encaramos uma nova e convincente forma de ver o mundo. E certamente você conhece alguém – quem sabe até si próprio – que se encaixa perfeitamente em um dos arquétipos acima… Um prato cheio para os aspirantes à psicologia analítica de Jung.
Tantos foram os filósofos que investiram o tempo de suas vidas na busca da verdade e reduziram-na em um compilado de livros, mas qual realmente a encontrou? Platão? Aristóteles? Kant, talvez? Ou Nietzsche (está na moda, afinal)? Para alguns, certamente algum nome vem à cabeça com pura firmeza e convicção. Para outros, à mercê da mente aberta e da relatividade, nome nenhum ou mais de um. Talvez sejamos fisiologicamente incapazes de compreender a verdade. Ou talvez não haja verdade no final. Se até mesmo a Física Sólida de Newton dada como quase completa até o século XX fora sacudida pela Relatividade de Einstein e a Física Quântica de Planck, que dirá a metamorfa Metafísica? Somos, a priori, vazios. Não há sentido na vida e cabe, portanto, a cada um de nós atribuirmos-lhe um. Aqui habita a nossa liberdade. E dessa liberdade caracteriza-se a modernidade.
“O silêncio está tão repleto de sabedoria e de espírito em potência como o mármore não talhado é rico em escultura.”
Como se dar bem na modernidade? Não há fórmulas. Mas se você está aqui e se interessa por algo como Literatura, pouco provavelmente a ideia do hedonismo niilista seguido pelas massas te conforta. Se em Admirável Mundo Novo Huxley nos alertou sobre o perigo de nos tornarmos escravos das sensações, em Contraponto ele nos avisa sobre o cuidado para não nos tornarmos escravos do intelecto. Viver inteiramente sob os instintos é reduzir-se à condição do homem como besta animal; viver inteiramente sob o racionalismo é reduzir-se à condição do homem como espírito estrangeiro ao mundo real, reducionista da complexidade da vida em falsas abstrações. Talvez um equilíbrio entre a matéria e o espírito – entre Dionísio e Apolo de Nietzsche -, sem extremismos, seja a resposta. Quem já se sentiu intensamente perdido, ouvindo alguma música melancólica do tipo The Smiths, triste, no duro mesmo, e sem saber o motivo do sentimento, sabe a importância de um sentido para a vida. Sentir-se vazio é realmente um porre enorme. O primeiro passo é ter consciência do poder inato do homem para escolher o próprio rumo existencial. E então escolher. E se não der certo? Metamorfose ambulante. Escolher de novo! E daí é só viver…
“A constância é contrária à natureza, contrária à vida. As únicas pessoas completamente constantes são os mortos.”