Ian McEwan e a atividade imediata de observar

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Poucos têm o poder de imprimir em seus textos o ato de observar. Encontrar gestos e sinais e enxergar sob eles a intenção do ser, é isso que faz Ian McEwan, autor de Serena, Reparação e outras obras.

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Ian McEwan

Ian McEwan é um autor cultuado, com prêmios como o Booker Prize em sua estante. Britânico, originário da cidade de Aldershot, publicou seu primeiro trabalho em 1975. É um dos mais importantes escritores ingleses contemporâneos, e tem livros como Amsterdam e O Jardim de Cimento em seu currículo. No entanto, sua maior recomendação são suas histórias em si. Todas elas primam pelos detalhes, pelas descrições atentas e pela vida interior dos personagens. Em seu livro mais celebrado, Reparação, adaptado para o cinema em 2007, a primeira parte da história é tomada por um único dia, aprofundado em cento e quarenta páginas de uma escrita clara e aguda.

McEwan é um exímio observador. Em cada gesto de seus personagens, há um mundo de intenções camuflado e narrado passo a passo ao leitor, de modo que em poucas linhas somos fisgados pelo personagens e de repente estes se tornam um irmão, um amigo, nós mesmos. Em uma sociedade onde as ações imediatas valem mais que a ponderação, onde a fugacidade pesa se comparada a calma, ao ato de observar e refletir e ao pensamento, ler as histórias de McEwan nos mostra a importância de parar e refletir e o incrível poder que é ver além do que se vê, destrinchando o objeto observado até seu âmago.

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Cena do filme “Desejo e Reparação” (2007)

Ler Reparação, livro mais aclamado do autor, é encontrar mundos inteiros sob olhares, diálogos ou ações aparentemente ingênuas, mundos que nos mostram a extensão a que o labirinto de ações e motivos de um ser pode chegar. O que dizer do simples gesto de Briony de decepar urtigas, para lá e para cá, em um momento de raiva?

Uma urtiga alta, de aparência orgulhosa, fazia charme, inclinando a cabeça um pouco, as folhas do meio viradas para fora, afirmando sua inocência — aquela era Lola, e, embora choramingasse pedindo piedade, o açoite de um metro de comprimento atingiu-a nos joelhos, e o resto do corpo inútil foi parar longe. Aquilo dava tanto prazer que não se podia parar, e as próximas urtigas também eram Lola.”*

Mais tarde, quando Lola, sua prima mais velha, já havia sido metaforicamente morta tantas vezes, o autor, exercendo seu poder diante da personagem, explica os gestos de Briony: “Açoitar as urtigas se transformara num ato de autopurificação.” * De repente, o singelo ato ganha uma extensão maior, o ser se projeta no gesto tirando sua simplicidade. Briony se sente absorta, sente prazer com aquilo. As pobres urtigas então passam a representar seu passado e “uma espécime magricela tornou-se o representante de tudo o que ela fora até aquele momento. (…) Firmando os pés na grama, Briony livrou-se de sua velha personalidade ano a ano, em treze golpes.” *

Ainda em Reparação, McEwan nos aponta os primeiros sinais em Cecília (irmã mais velha de Briony) que a fariam desafiar Robbie, seu amigo de infância, em frente à fonte do Tritão. McEwan nos mostra uma figura irritadiça de Cecília, mas por que irritadiça? Pelo tédio e pela inércia de achar-se novamente na casa de sua infância, após uma temporada de independência na faculdade? Guiando-nos para a resposta, McEwan nos diz: “Ninguém retinha Cecília, ninguém se incomodaria muito se ela fosse embora. Não era o torpor que a mantinha ali (…). Ela simplesmente gostava de sentir que a impediam de partir, de que tinham necessidade dela.” *

No entanto, existe um segundo plano para as razões de Cecília, oculto aos leitores que se deixam enganar por sua indocilidade e suas desculpas. Após uma sentença de razões superficiais que a personagem usa para enganar a si mesma, o motivo torna-se claro: a “afetação de distância” de Robbie, que de repente começa a tratá-la com distanciamento e cerimônias. Tal distância a irrita, e torna-se um obstáculo. “Eles se conheciam desde os sete anos de idade, ela e Robbie, e era incômodo constatar que os dois ficavam constrangidos quando conversavam. Embora (Cecília) achasse que a culpa era mais dele (…), sabia que aquele era um assunto que seria necessário pôr em pratos limpos antes de pensar em partir.” *

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Cecília Tallis (Keira Knightley) e Robbie Turner (James McAvoy) em “Desejo e Reparação” (2007)

Porém nada é posto em pratos limpos. E o incômodo que Cecília sente pela distância de Robbie, distância essa filha de um sentimento maior que Robbie começa a nutrir por ela, será o estopim para a cena em frente à fonte onde o corpo quase desnudo de Cecília irá acabar com qualquer resquício de sua amizade de infância. Só então Cecília será capaz de achar em si o sentimento por Robbie que ela própria não era capaz de enxergar. McEwan nos dá todas as pistas para que, com ele, consigamos exercer o ofício de observar e ver além do que nos é dado pelas palavras.

Os exemplos vão além de Reparação. Em todos os seus livros somos capazes de encontrar esse elemento de aprender a ver claramente. Que palavras usar então em relação àquele único capítulo em Serena, onde o autor passa a vez para nós e nos faz observar seu livro com outros olhos, mudando-o completamente? Ou em O Jardim de Cimento, onde assistimos gradualmente a mudança sinistra de papeis em uma família de crianças abandonadas?

Ian McEwan nos ensina a ler e escrever com profundidade. Não é à toa que a sensação mais recorrente em seus leitores é a impressão de ele poder explicar, transformar em palavras, ações e sentimentos que por meros leigos seriam inexprimíveis.

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* Os trechos tirados do livro correspondem à tradução de Paulo Henriques Britto, pela editora Companhia das Letras.

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