Agora meus olhos se abriram e nunca mais poderei fechá-los.
(J.M.Coetzee)
J.M.Coetzee, escritor Sul-Africano, nascido em 1940, vencedor de vários prêmios, entre eles o Prize (duas vezes) e o Prêmio Nobel de Literatura, é autor de inúmeros recomendáveis romances. Talvez, os mais conhecidos sejam À espera dos Bárbaros, Vida e Época de Michael K,Desonra e A vida dos Animais.
Não optei por nenhum desses para tecer meus comentários, mas sim por outro título, ainda pouco pesquisado no Brasil. Falarei sobre o livro A Idade do Ferro, edição de 1990, publicado pela editora Siciliano. O título do romance nos remete ao Mito das cinco raças, presente em Os Trabalhos e os Dias, de Hesíodo. No texto Relendo Hesíodo: o mito das raças em A idade do ferro, de J. M.Coetzee, Denise Almeida Silva escreve:
A quinta raça, de ferro, correspondente ao período em que vive o autor e é tão terrível que este lamenta estar vivo em tal tempo. Contrastando com a vida despreocupada e tranquila da idade do ouro, o homem da idade de ferro vive o preâmbulo de degenerescência total.Hesíodo apresenta o contraste entre ‘o que é’ e o que será, projetando um futuro negro em que a presente relação de semelhança que ligava pais a filhos, bem como a relação fraternal, a prática da hospitalidade e toda noção de companheirismo desaparecerão. Tão logo a presente geração envelheça, filhos deixarão de se assemelhar a seus pais, que serão insultados e censurados com duras e cruéis palavras, e desamparados por aqueles. Amor, companheirismo, hospitalidade deixarão de ser ‘como já havia sido’. A inveja malevolente e malsonante a todos os homens acompanhará; honrar-se-ão o malfeitor e o homem desmedido, de forma que a justiça desaparecerá. Zeus não deixará tal Hybris sem castigo, assinalando desde já um tempo quando, em lugar da eterna vitalidade dos homens primevos, esses mortais serão retirados da Terra, como as precedentes raças. (página 74)
O tema deste romance é a “degenerescência total”, isto é, diz respeito à injustiça e à brutalidade humana. O livro é um berro de denúncia, um chamamento à realidade, no caso em questão, sobre a crueldade do Apartheid na África do Sul.
A história se passa na década de 80 do século XX, tem como cenário a Cidade do Cabo, ambiente em que se configuram os absurdos da segregação racial: os negros vivendo em lugares de péssimas condições de higiene; negros passando fome; negros não podendo transitar por determinadas áreas da cidade; negros que não podem se pronunciar. Ainda, nesta década, viviam subjugados pela lei segregacionista do Governo de Malan, do Partido Nacional. Segundo José Fiuza Neto:
Malan colocou em prática o ideário purificado de seu partido por meio de uma série de leis draconianas, que barravam ou limitavam consideravelmente o acesso dos negros e outras raças ao trabalho, moradia, uso da terra, educação, serviços de saúde e representação política. ( página 49)
Passiva a esse cenário, vive Sra. Curren, uma professora universitária aposentada. Em sua velhice quase solitária, a professora descobre que está muito doente: está “gestando” um câncer. Enferma, permite que um mendigo (Vercueil), que flagrou dormindo em seu quintal, viva em sua residência. Ele será seu amigo fiel até o fim. Há também a companhia de Florence, sua empregada, e de seu filho Bheki e mais um amigo do mesmo.
À medida que sua tragédia individual aumenta (câncer), aumenta também sua conscientização sobre o drama social/racial da África do Sul. É na convivência com os jovens, o filho da empregada e seu amigo, que Sra. Curren vai se confrontar, de fato, com a realidade caótica de seu país. Os jovens negros são resistentes ao sistema do apartheid e sofrem um atentado. O amigo de Bheki fica gravemente ferido. Ao questionar o menino sobre o motivo pelo qual foram perseguidos pela milícia, Bheki responde:
Eles não estão atrás de mim. Eles estão atrás de todo mundo. Eu não fiz nada. Mas qualquer um que eles veem, que acham que deveria estar na escola, eles tentam pegar. Nós não fazemos nada, só dizemos que não vamos à escola. Agora, eles estão fazendo esse terror contra nós. Eles são terroristas:
– Por que você não vai para a escola?
– Para que serve a escola? Só para nos ajustar ao sistema do apartheid…
– O que é mais importante, que o apartheid seja destruído ou que eu vá para a escola?” (página 65)
O sistema educacional da África do Sul nada tinha a acrescentar aos negros, apenas servia para preservar uma discriminação racial sistemática. Claude Carpentier, em As Desigualdades Escolares Na África do Sul, escreve:
As escolas para brancos, para os quais a escolarização é obrigatória, estão destinadas à formação da elite, sendo-lhes reservada a maior parte dos recursos, enquanto as escolas para negros, limitadas em suas ambições, frequentemente se contentam com os rudimentos de uma instrução não obrigatória, apropriada a uma população que ocupará posições sociais subalternas. O financiamento desses estabelecimentos está adaptado a suas modestas visões. (página 06)
Cabe lembrar que no período que Coetzee escreveu o livro, havia uma efervescência de rebeliões estudantis. Jovens assumiram lideranças de movimentos contra o Apartheid: boicotaram aulas, percorreram ruas, manifestaram-se; a agitação cresceu e milhares de crianças e jovens foram aprisionadas, muitas delas, submetidas à tortura e à execução.( Denise Almeida Silva)
Nesse contexto, cada vez mais, a professora vai se envolvendo com as situações do filho da empregada, que representa a jovem militância negra da década de 80. Senhora Curren se questiona como pode, até então, ser conivente com esse sistema. Num momento de reflexão, como mulher branca, pensa:
Se houver alguma justiça, seremos barrados no primeiro limiar do outro mundo. Brancos como as larvas dos insetos, nos nossos cueiros, seremos despachados para unirmos àquelas almas infantes, cujo lamento eterno Enéas enganou-se em prantear.(página 87)
O ápice da narrativa ocorre com o desaparecimento de Bheki. A mãe do menino e a professora vão à procura do jovem, nessa busca as mulheres se deparam com cenas terríveis de miséria e violência:
Estávamos detrás de um aglomerado de uma centena de pessoas que olhavam para baixo, pra uma cena devastadora: choupanas queimadas e fumegantes, choupanas ainda em fogo, desprendendo uma fumaça negra. Uma miscelânea de móveis, roupa de cama e objetos de casa jogados no aguaceiro. Grupos de homens trabalhavam para resgatar o conteúdos das choças em fogo, indo de uma para a outra, apagando o mesmo. Foi o que pensei até que, com um choque, me veio à cabeça que eles não estavam salvando, mas incendiando, que a luta que eu os via travar não era contra o fogo, mas contra a chuva. O suspiro vinha das pessoas reunidas na borda desse anfiteatro, nas dunas. Como carpideiras num funeral, estavam de pé no aguaceiro homens, mulheres e crianças, encharcados, mal tentando se proteger, contemplando a destruição. (página 90)
É neste ambiente caótico que encontram o jovem militante:
Por dentro, o prédio era uma mistura de cascalho e vigas carbonizadas. Encostados à parede mais distante, protegidos da chuva mais forte, estavam cinco corpos deitados ordenadamente. O corpo do meio era o de Bheki, da Florence. Usava ainda a calça de flanela cinza, a camisa branca e um pulôver castanho-avermelhado, da escola, mas os pés estavam descalços. Os olhos estavam abertos e esgazeados, a boca também aberta. A chuva havia caído sobre ele durante horas, sobre ele e seus camaradas, não apenas aqui, mas onde quer que tenham estado ao encontrar suas mortes; suas roupas e o próprio cabelo tinham um aspecto aplanado e morto. (página 96)
Após a morte de Bheki, senhora Curren ainda abriga um rebelde fugitivo e tem sua casa invadida pela milícia. Os policiais a ameaçam, bagunçam sua residência e a fazem sair; encontram o rebelde e o matam. Revirada a sua casa, para sempre revirada sua existência. A Idade do Ferro revela-se uma metáfora: tal qual senhora Curren, a sociedade Sul-Africana também está doente, em estado terminal.
A Idade do Ferro
J.M. Coetzee
Editora Siciliano