Ideologia versus amor em ‘As Rãs’, de Mo Yan

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Em As Rãs, Mo Yan, chinês ganhador do Nobel em 2012, faz um grande painel da China

Mo Yan

É verdade que, em tempos de redes sociais, nas quais a comunicação se dá de forma instantânea, falar de cartas deva soar um tanto antiquado. Elas são cada vez menos usadas no dia a dia. No entanto, na literatura, ainda há espaço para esse gênero, e Mo Yan, em seu romance As Rãs, publicado em 2015 pela Companhia das Letras, soube usá-las como fio condutor de uma narrativa elegantemente simples e emocionante.

As cartas enviadas por Girino, dramaturgo de meia idade, a seu professor de Literatura são repletas de lembranças doces de sua aldeia, no norte da China comunista, em tempos da Revolução Cultural liderada pelo líder Mao Tsé-tung. São doces enquanto vislumbra na tia uma grande heroína por ser a primeira mulher da região a estudar obstetrícia e, de posse de técnica e estudo, tentar afastar as superstições do povo simples e trazer à vida mais de oito mil crianças. Mas também serão amargas quando tiver de recuperar das gavetas da memória as histórias enfrentadas por essa mesma tia que, obstinada e devota do Partido Comunista, lutará por mais de cinquenta anos para pôr em prática a feroz política do filho único.

A política do filho único foi a solução adotada pelo governo chinês para conter o avanço populacional, que, na década de 1970, beirava quase 1 bilhão de pessoas. Ela consistia em aplicar multas a quem desobedecesse à norma do filho único, mas não só: havia casos de infanticídio e até interrupção da gravidez, mesmo quando o feto estava em estágio avançado de desenvolvimento.

Na história, Corre Corre, verdadeiro nome de Girino, primeiro bebê a nascer pelas mãos habilidosas da tia Wan Coração, a pedido de seu professor, empenha-se em escrever uma peça em homenagem a ela. A tia será a figura que encarnará as contradições de sua sociedade. Como parteira formada, fará o parto de milhares de crianças, jogando luz ao slogan governamental de que as crianças são o futuro da nação. Por outro lado, essa mesma nação, preocupada com o crescimento populacional desenfreado, porá em prática um severo controle de natalidade, que ficará ao encargo de Wan Coração. Estima-se que, durante a política do controle de natalidade, mais de 400 milhões de pessoas deixaram de nascer.

O drama aumenta quando casais veem nascer sua primeira cria;  não sendo menino, aquele responsável pela continuidade da família, envolvem-se numa rede clandestina para terem seu segundo filho e escondê-lo das mãos do Estado Comunista, que, na figura da tia Wan Coração, procederá ao aborto do segundo filho, mesmo o feto contando mais de cinco meses, podendo dar cabo da vida da mãe e da criança. “O planejamento familiar é uma grande prioridade, que diz respeito ao futuro do país e da nação… Pra construir uma país forte com as quatro modernizações, devemos fazer todo o possível para controlar o crescimento da população e melhorar sua qualidade… Quem engravidar de forma ilegal não deve confiar na sorte e tentar se safar… Nada escapa aos olhos das massas populares, mesmo que se esconda num buraco ou na mata fechada, não será capaz de escapar… Quem emboscar ou agredir um funcionário do planejamento familiar será punido como contrarrevolucionário em flagrante… Quem de alguma maneira sabotar os trabalhos de planejamento familiar, será rigorosamente punido conforma disciplina do Partido ou a legislação nacional…”.  É o que grita a tia Wan Coração no alto falante em suas buscas por aqueles que sonham com o segundo filho, a contragosto do Estado.

Os críticos à política do filho único alegam que ela levou o país a um grande desequilíbrio populacional, na medida em que o Estado chinês será até 2050 o país cuja população envelhecerá antes mesmo que a nação seja rica. O país está envelhecendo. Além disso, a China não conta com programa de previdência social e, por consequência e tradição, seriam os homens os responsáveis por seus pais na velhice. Nessa perspectiva, o problema é agravado quando as famílias têm como primeiro filho uma menina, que quando casa, pelo costume, passa a pertencer à família do marido; ela não só terá de cuidar de seus sogros, como também de seus pais.

No romance, tia Wan acredita cegamente na política do Partido e não se desviará de sua missão. Com o passar do tempo, a política se burocratizará, fenda por onde a corrupção prosperará acima das ideologias. Por ela, pela corrupção, os ricos terão seus bebês, o que em chinês é designado com a palavra “wa”, cujo significado também pode ser rã.

Mo Yan, Nobel em Literatura, em 2012, nesse romance desfere críticas sutis à corrupção no Estado chinês, ao Partido Comunista que conduziu o governo numa lógica de ceifar sonhos. Ele soube mostrar brilhantemente que as ideologias, por mais atrozes que possam ser, não são mais forte que a tradição e o amor; e que o dinheiro a ela não se subjaz.  

Referência:

MO YAN. As rãs. trad. Amilton Reis. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

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