Nestes dias que antecedem a abertura da Copa do Mundo da FIFA Brasil 2014 (eta diacho de nome esquisito) , num país que se ressente da falta de recursos para oferecer serviços básicos com qualidade, como saúde, educação e segurança, a euforia rivaliza com o crescente desgosto contra as imposições do padrão Fifa e contra os milhões gastos para a construção de estádios faraônicos, que causaram o despejo de milhares de famílias e a morte de trabalhadores, lembro uma crônica do Fausto Wolff.
Em 1970, o escritor morava em Roma – por conta da censura do governo militar teve que exilar-se na Europa, onde viveu por 10 anos. Ele revela que assistiu à final da Copa do México, entre Brasil e Itália, na companhia do Millôr Fernandes – que dupla! Os dois se preparavam para torcer contra o escrete brasileiro, pois sabiam o proveito que a ditadura tiraria em caso de vitória. Como, porém, torcer contra um time que ultrapassa os limites do esporte para transformar-se num fenômeno artístico de rara beleza com monstrões como Pelé, Gérson, Rivelino, Tostão, etc? Logo no primeiro gol da nossa seleção estávamos aos urros dentro de casa e éramos, sem dúvida, no raio de alguns quilômetros, as únicas vozes destoantes do silêncio que se abateu sobre a cidade do pescador, contou Fausto.
Quando morreu, há quase seis anos, o escritor Ruy Castro, que conviveu por quatro décadas com o Lobo, como Fausto era carinhosamente chamado, disse: Houve época no Rio em que todos os homens queriam ser Fausto Wolff. Pela inteligência e pelas mulheres que ele conquistava. E hoje estou igualzinho ao Fausto. Não por conta do intelecto privilegiado e das meninas que não resistem ao meu charme – que pena. Igualzinho ao Fausto, em 1970, tentando não torcer pela seleção brasileira. Mas sei de antemão que não conseguirei ser indiferente a um gol do Brasil, mesmo o time de Neymar e mais dez, não sendo capaz de vencer com facilidade um combinado de times da várzea.
Fausto Wolff, pseudônimo de Faustin von Wolffenbüttel, é um escritor por quem nutro grande admiração. Quis que ele fosse homenageado na minha colação no curso de jornalismo, mas o meu lobby não obteve sucesso, a turma optou pelo William Bonner, infelizmente. Fausto começou no jornalismo como repórter policial do jornal Diário de Porto Alegre. Mais tarde colaborou com o Pasquim e com o Bundas, e se tornou um bastião da imprensa independente no país, embora também tenha escrito colunas para A Tribuna da Imprensa, Diário da Noite, O Globo e Jornal do Brasil, mas sem transigir nem agradar quem quer que seja.
Desconhecido do grande público, ele escreveu mais de 20 livros, entre romances, contos, poesias, ensaios e literatura infantil, e traduziu outras dezenas – dessa atividade que tirava o seu sustento. Falava seis línguas. Trabalhou como diretor de teatro e cinema, ator e lecionou literatura nas universidades de Copenhague e Nápoles. Tinha quase dois metros de altura e era um boêmio daqueles que dão o tom para o galo cantar. Nasceu em Santo Ângelo (RS), em 1940. Apesar de não ter resistido à magia de Pelé e companhia, sempre se manteve como um crítico mordaz da política e do capitalismo, e até o fim foi fiel ao ideário de estar ao lado dos mais fracos. Máxima que a imprensa brasileira não se envergonha de esquecer.
A genialidade e o espírito contestador de Fausto podem ser conferidas em dois trechinhos de suas colunas. Já escrevi em algum lugar que, enquanto não nos revoltarmos contra o conceito de democracia que considera sagrado o direito de uma minoria escravizar o resto, jamais chegaremos à condição de seres humanos. E: Enquanto não se der a revolução da humanidade contra a tirania, enquanto deixarmos que nos humilhem para que possamos continuar vivendo, teremos de suportar algumas imperfeições, certos espinhos colocados em nossos sapatos ainda na infância que não podemos ou não queremos tirar.