A Ilha da Infância, de Karl Ove Knausgard, e seus limites

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Em A ilha da infância, “o norueguês Karl Ove Knausgard transformou em livro suas lembranças e é como se estivéssemos ao lado de alguém conhecido que se aproxima e as despeja livremente, filtradas pelo limite da memória e daquilo que se deseja contar.”

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Karl Ove Knausgard

 

Poderíamos ter um nome para cada etapa da vida, como um título para definir o que fomos e o que nos tornamos. É mera divagação mas cabe um mundo nela, como em muitas, muitas histórias contadas a nós pelo Sr. Knausgard – a quem podemos chamar de Karl Ove, não apenas por serem esses seus primeiros nomes mas por ter sido chamado assim quando criança, período da terceira parte de sua jornada, batizado A Ilha da Infância.

O caminho do infante Karl Ove lembra uma brincadeira de criança, fluindo de tema a outro com suas preocupações, desde sentir-se ‘aceito’ (ou o mais próximo que o autor entende por isso) pelo pai ao relacionamento com seus colegas de escola. Estes não o aborrecem, pelo contrário, pois em um misto de ingenuidade e arrogância ele se mete em confusão por causa deles, às vezes omitindo ou se enrolando para contar o porquê de ter se envolvido em uma encrenca séria graças a eles – feito acertar o teto do carro de alguém com uma pedra.

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A ilha da infância (Companhia das letras, 2015)

Nisso atingimos um ponto-chave da narrativa: a relação com a família. A presença do pai domina não apenas a ordem da casa, essencialmente patriarcal na Noruega dos anos 70, mas também a cabeça do menino Knausgard. A mãe lhe parece tranquila e até doce em algumas memórias, o irmão mais velho Yngve é guia ou antagonista noutras, mas a suavidade familiar acaba aí.

As broncas por causa de situações como a da pedra se entendem, mas em outras tão prosaicas e menos letais é fácil interpretar como medo o sentimento do jovem protagonista por seu pai. A situação em que Karl Ove liga a televisão e ela queima em seguida, sua demora em contar isso e a resposta de seu pai ilustram essa impressão; além dos frequentes choros, relacionados ou não ao pai, que reforçam uma auto-avaliação pesada de uma criança mimada e indefesa perante o mundo.

Viram-se mais páginas do livro e acompanhamos mudanças no lar dos Knausgard: mãe e pai se ausentam, um de cada vez, para se dedicarem aos estudos, e novas faces da convivência se revelam ou se ocultam de acordo com o parente distante. Outro fato também altera a vida do pequeno Karl Ove, já não tão pequeno – a mudança de série na escola, com todas as descobertas possíveis a partir dos onze anos, algo bobo dependendo da perspectiva mas significativo para o severo recorte do autor, que inclui seus namoros iniciais, alguma hostilidade social e a companhia de um novo amigo, além da influência crescente da leitura.

O norueguês Karl Ove Knausgard transformou em livro suas lembranças e é como se estivéssemos ao lado de alguém conhecido que se aproxima e as despeja livremente, filtradas pelo limite da memória e daquilo que se deseja contar.

“Afinal de contas, o problema não é que o mundo estabelece limites para a fantasia, mas que a fantasia estabelece limites para o mundo” (p. 372)

Essas memórias podem ser lidas tanto como refúgio quanto armadilha, devido ao olhar do autor para sua meninice; mesmo sem idealizações temos um olhar parcial, responsável por nos fazer rir com algumas passagens e em outras nos perguntar se o autor não tem nada a fazer exceto andar em círculos guiado pelo ressentimento. O livro não se resume a riso-ou-choro, pois sua narração tem potencial para causar um ‘esquecimento’ de  que se trata de um livro e viajar em seu ritmo; o tom de retrospectiva auxilia, e cria espaço para identificação de quem lê.

A Ilha da Infância é o terceiro de seis livros autobiográficos de Karl Ove Knausgard, elogiado por sua prosa, cujo sucesso ainda não tem explicação completa. Óbvio que em meio a elogios há quem o enalteça demais, sua obra já foi comparada à de Marcel Proust e Knausgard já foi alçado a gênio. Sua escrita tem muitas qualidades, mas ainda é muito nova para arcar com a responsabilidade dessa comparação ou ser considerada um ‘pilar’ da nossa época. E talvez o próprio autor seja novo demais para costurar seu passado ao seu futuro, e quiçá esta obra mista de memória e ficção suavize o limite entre a fantasia e o mundo.

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