“A Ilha” de Aldous Huxley: uma sociedade alheia ao consumo de massa fordista

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Já pensou como seria um mundo sem redes sociais e quase sem propaganda? Aldous Huxley já imaginou um mundo semelhante em A ilha, seu último livro

huxley brave new world

No mês passado, completei meu primeiro ano sem redes sociais. Eu não era bem o que se pode chamar de viciado, mas era assíduo o suficiente para adotar certos tipos de comportamento largamente difundidos nas redes sociais que são tidos como corretos. Aquela coisa de “uma relação séria apenas se estiver no status do facebook” ou então de “a felicidade é mais válida se compartilhada com os amigos da rede social com fotografias e legendas inspiradoras”.

A sociedade, por vários mecanismos sofisticados (as redes sociais é um desses), exerce uma coesão muito sutil, quase imperceptível às pessoas, que acham que estão “construindo o verdadeiro eu”, quando, na realidade, são parte de uma engenhosa máquina social forjada para torná-las inteiramente semelhantes umas às outras.

No universo de Aldous Huxley, autor de Admirável Mundo Novo, essa “engenhosa máquina social” era o próprio Estado totalitário. O escritor inglês viveu as profundas transformações surgidas no mundo a partir do fordismo e morou na Itália durante a década de 20, transmitindo através dos seus livros uma marcante atmosfera onde o Estado buscava regular não apenas a economia, mas também as relações sociais.

Tratava-se, segundo David Harvey, de formar o “novo homem” para um “certo tipo de probidade moral, de vida familiar e de capacidade de consumo prudente e ‘racional’ para corresponder às necessidades e expectativas da corporação” (p. 122). Bem, essa história não deu muito certo porque as próprias pessoas reagiram a esse pacto social mecânico e rígido e porque mesmo a economia do bem-estar social encontrou limites em sua expansão.

Em A Ilha, último livro que escreveu, Huxley retoma a ideia de uma construção social na qual são necessárias a produção de blindagens contra convicções exógenas e a intensa elaboração cognitiva para o convencimento sobre valores de uma sociedade. No entanto, ao invés de máquinas excêntricas, há uma filosofia racional e espiritual fortemente disseminada entre os indivíduos.

A ilha do livro chama-se Pala. A região foi favorecida por não ter sido colônia de nenhuma nação, portanto, não fora submetida a religiões artificiais, escapando também de ser uma produtora braçal destinada à agricultura de exportação. Seus líderes, sem a danosa influência externa, tomaram decisões sensatas e realistas com o objetivo de garantir, com os escassos recursos, condições adequadas à vida em comum.

A história gira em torno de Will Farnaby, um jornalista inglês que, vítima de um naufrágio, chega semiconsciente a Pala. Oficialmente ele esteve na ilha vizinha, Rendang, para uma cobertura crítica sobre o seu regime militar. Farnaby, no entanto, presta serviços a um magnata do petróleo e, extraoficialmente, faz prospecções sobre a possibilidade de expansão dos negócios petrolíferos na região. A partir da chegada em Pala, no convívio com os palaneses, sua visão de mundo entra em choque e é reelaborada pela concepção dos moradores da ilha.

É aí que o enredo tem suas vantagens e desvantagens. O hábito espiritual e racional dos palaneses põe no chinelo a “vida cinza”, como eles chamam a nova “peste negra” da sociedade. Ao invés de explicações metafísicas para o mundo, buscam compreender a vida, seus limites e prazeres. Os pássaros da região estão sempre a ecoar a palavra “atenção” para lembrar às pessoas a viverem o presente.

O autoconhecimento é estimulado como condição para que as pessoas possam se tornar verdadeiramente boas, descobrindo falsas ideias que condicionam seus sentimentos e ações e que servem para manipular os indivíduos.

Algumas contraposições são simbólicas. Pala tem um rajá (uma espécie de príncipe) que, educado no exterior, tem visões de mundo diferentes dos seus moradores e faz articulações nos bastidores buscando a “modernização” da ilha através do petróleo. Se para ele o sexo é uma aflição humilhante que o homem inteligente deve manejar, os palaneses, em contraposição, acham absolutamente natural que coração e glândulas endócrinas tenham motivações diferentes, sem condicionar as experiências dos parceiros.

A experiência educativa, a relação com a saúde preventiva, a intensidade espiritual e a autocompreensão sobre a morte em Pala são ricamente abordadas ao longo da história.

A desvantagem, contudo, é que Pala é contada quase como uma não-ficção, com longos diálogos sobre o estilo de vida dos moradores, tornando a leitura maçante em determinados momentos. Há pouca ação e muita propaganda.

Este habitat huxleyniano é, apesar disso, um parâmetro para autorreflexão sobre os valores que cultivamos e a origem desses valores. Ao invés de um padrão uniformizador imposto socialmente de cima pra baixo, como nas primeiras décadas do século XX, os padrões homogeneizadores atuais são muito mais sofisticados e camuflados, com instrumentos muito mais eficientes e múltiplos, que vão desde a Revista Caras à disseminação da banalidade vulgar que emana cotidianamente no facebook.

Diferentemente dos palaneses, a nossa identificação com o mundo reside cada vez mais na comparação entre os prazeres dos outros, através da seletividade do que esses expõem nas redes sociais, e os nossos, pela intensidade e qualidade das experiências que postamos para que os outros julguem com curtidas e comentários, e que só valem a pena ser vividas se compartilhadas.

O resultado é: conhecemos cada vez menos a nós mesmos e vivemos cada vez mais em função dos julgamentos alheios.

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