21 de março foi instaurado pela ONU (Organização das Nações Unidas) como o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, em referência ao Massacre de Sharpeville, no regime do apartheid, na África do Sul. Uma data triste que traz consigo a vergonha que a própria humanidade provoca com seus atos de insanidade.
Para lidar com o que perdura dessa vergonha, no entanto, não podemos afastar-lhe os olhos. Precisamos enfrentá-la, como humanos, e conversar a respeito dela. Décadas se passaram desde março de 1960. E se, nesse ano tão redondo uma pergunta já talvez encontrasse dificuldade em ser respondida, o século XXI não surge como mais capaz. Para combater a discriminação racial, é necessário uma profunda compreensão de sua mistura racial, histórica e cultural de fatores. No entanto, antes de considerar tamanha complexidade, nos encontramos em uma situação de compreender pouco mesmo algumas das questões mais essenciais.
Uma das questões: quando falamos do negro, de que seres humanos estamos falando? Quem é o negro? E, como brasileiros: quem é o negro no Brasil?
Do seio do continente africano e nosso contemporâneo, o professor-titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Kabengele Munanga, atualmente vice-diretor do Centro de Estudos Africanos e do Museu de Arte Contemporânea dessa mesma instituição, vem até nós responder essa pergunta. Kabengele Munanga nasceu na República Democrática do Congo, e veio para o Brasil terminar seu mestrado entre 1975 e 1977, na Universidade de São Paulo. É um incansável lutador pela eliminação da discriminação racial. É autor de uma obra extensa sobre o tema, tendo criado os livros A identidade negra no contexto da globalização (Ethnos Brasil, revista do NUPE/Unesp, Marília, 2002) e Mestiçagem e identidade afro-brasileira (Cultura Vozes, Petrópolis, RJ, 1999).
Veja a resposta que Kabengele Munanga dá à revista Estudos avançados: quem é o negro no Brasil?
Parece simples definir quem é negro no Brasil. Mas, num país que desenvolveu o desejo de branqueamento, não é fácil apresentar uma definição de quem é negro ou não. Há pessoas negras que introjetaram o ideal de branqueamento e não se consideram como negras. Assim, a questão da identidade do negro é um processo doloroso. Os conceitos de negro e de branco têm um fundamento etno-semântico, político e ideológico, mas não um conteúdo biológico. Politicamente, os que atuam nos movimentos negros organizados qualificam como negra qualquer pessoa que tenha essa aparência. É uma qualificação política que se aproxima da definição norte-americana. Nos EUA não existe pardo, mulato ou mestiço e qualquer descendente de negro, pode simplesmente se apresentar como negro. Portanto, por mais que tenha uma aparência de branco, a pessoa pode se declarar como negra. No contexto atual, no Brasil a questão é problemática, porque, quando se colocam em foco políticas de ações afirmativas – cotas, por exemplo –, o conceito de negro torna-se complexo. Entra em jogo também o conceito de afro-descendente, forjado pelos próprios negros na busca da unidade com os mestiços. Com os estudos da genética, por meio da biologia molecular, mostrando que muitos brasileiros aparentemente brancos trazem marcadores genéticos africanos, cada um pode se dizer um afro-descendente. Trata-se de uma decisão política. Se um garoto, aparentemente branco, declara-se como negro e reivindicar seus direitos, num caso relacionado com as cotas, não há como contestar. O único jeito é submeter essa pessoa a um teste de DNA. Porém, isso não é aconselhável, porque, seguindo por tal caminho, todos os brasileiros deverão fazer testes. E o mesmo sucederia com afro-descendentes que têm marcadores genéticos europeus, porque muitos de nossos mestiços são euro-descendentes.
A genética, ciência que no final do século XX surge como promessa de ferramenta a desvendar muitas das questões do homem e de suas origens, aparece ainda hoje (e talvez sempre) insuficiente como fonte de luz sobre esse debate. A citação de Munanga mostra um dos motivos: até certo ponto, ser negro é uma questão de identificação. Uma questão de identidade. E se um dos principais espaços onde se procura por identificação é a arte, falemos de arte. Falemos de literatura. A literatura pode responder essa pergunta?
Sobre escritores afrodescendentes, temos Lima Barreto, autor de Clara dos Anjos e cronista atuante, que fazia de seus olhos um espelho para retratar a vida do Rio de Janeiro, no inicio do século XX (biografia completa aqui). Outro importante representante é Cruz e Souza, filho de escravos, foi um o poeta que deu início ao simbolismo no Brasil. Com sua linguagem requintada, explorava com criatividade recursos sinestésicos para dar tom à sua poesia. Por fim, sempre a ilustre figura de Joaquim Maria Machado de Assis; Machado de Assis é um dos maiores representantes da nossa literatura, senão o maior; importante por trazer na sua escrita o requinte, a acidez escorregando clarividente pela pena; o autor explorava muito bem o aspecto psicológico de seus personagens, sempre fazendo uma análise profunda e realista do ser humano; além de tudo, foi o idealizador da Academia Brasileira de Letras.
Podemos ver que, na literatura, estamos bem servidos de autores como esses acima lembrados. Mas, apesar do reconhecimento indiscutível que atingiram no âmbito da palavra, têm, no traçado de suas vidas, um embate profundo contra formas de exclusão social, alimentado pela discriminação racial, uma vez que, ou são negros de origem ou são afrodescendentes. Quando no intuito de compreender quem é o negro, talvez possa-se partir dos autores que são identificados e se identificavam como negros. Se de sua literatura podemos extrair a forma como enxergaram e enxergam seu mundo, suas obras talvez desfiram golpes mais precisos contra a ignorância do que qualquer outra arma disponível.
A arte, que unifica a todos, é o espelho da própria essência humana. Assim como a palavra é transparente e inerente a verdade. Essa expressa iminência que vem de dentro e, portanto, é alheia a fatores exteriores, quando não para descrever, sem julgamentos, aspectos relevantes da realidade e servir à imaginação, expressa valores humanos. O homem é um ser híbrido. Diferente nas suas características físicas, mas idêntico nos caracteres genéticos, com sua caminhada de homo sapiens para homo literatus, fortalecendo seus princípios de viver em sociedade, de construir cultura e velar por essa cultura disseminando história através da escrita.