Há pouco tempo, uma das músicas mais tocadas da rádio pop, e hit do youtube, era a composição de Kell Smith intitulada Era uma Vez, que, segundo a cantora, surgiu a partir de um sentimento compartilhando entre vários de seus amigos: a saudade da infância.
O motivo dessa saudade é muito bem sintetizado no seguinte verso da canção: “Porque um joelho ralado dói bem menos que um coração partido”, no sentido em que experienciamos na vida adulta muitas amarguras que nos fazem ter o sentimento de que o período da infância era “o dia em que todo dia era bom”. Realmente, podemos relacionar essa evasão da vida adulta com os estudos do sociólogo Zygmunt Bauman (1925-2017), nos quais é assinalado como o crescimento econômico globalizado fez a sociedade a partir da década de 1990 se moldar pela postura consumista enervante e repleta de riscos, provocando maior incidência de depressão psicológica, de modo que provavelmente mais dinheiro será gasto com antidepressivos, justamente porque essa postura consumista advém na mesma proporção em que temos nosso mundo psíquico degradado, tornando-nos subjetivamente vazios. Nosso propósito neste ensaio, baseando-nos em alguns exemplos literários e cinematográficos, é dar um passo além do senso comum para propor a reflexão de como as recordações da infância são um mecanismo de fuga da realidade, cujas consequências tendem a ser a conformidade diante os processos históricos, de modo a considerar a realidade como um aspecto implacável e inelutável.
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Muitas das experiências de vida nos permanecem obscuras, sendo que as sutilezas da memória fazem algumas serem mais difíceis de serem trazidas à luz. É necessário, pois, um esforço introspectivo para buscá-las nos longínquos rincões de nossa subjetividade.
O esforço também consiste no sentido de discernimento, pois nossas experiências de vida, as quais recuperamos por meio da introspecção, podem ser adulteradas no próprio ato de lembrá-las.
Ou seja, estamos extremamente vulneráveis de no ato de lembrar por modificarmos o passado concreto. A mim parece que só esse fato explica a esterilidade das intenções que os indivíduos nutrem em realizar um autoexame de suas experiências de vida.
Penso que a esterilidade é um fado, especialmente porque as regras sociais, com suas expectativas de conduta, facilmente obliteram qualquer propósito autêntico de romper com as alternativas seguras que elas nos oferecem. É sempre mais fácil conformar-se com uma trivial província de experiências do que ter a audácia de buscar um amplo horizonte de experiências de vida.
Quais seriam as consequências dessa decisão? Obviamente, com menos experiências de vida, mais dificuldades o indivíduo encontra de alegrar-se com a vida que leva. Trata-se, pois, de um engano acreditar que ao conformar-se às regras sociais alcança-se um êxito psicológico.
Será só uma questão de tempo até o sentimento de fracasso surgir; quando este irromper, será um sentimento demasiadamente esmagador, uma vez que de tanto conformar-se o indivíduo não perceberá que têm alternativas, não conseguirá imaginar quaisquer opções ou alternativas de vida, não conseguirá liberar-se da rede de obrigações cotidianas na qual está envolvido.
É fatídico e irônico o fato de a mentira de que precisamos para viver nos condenar a uma vida que nunca é realmente nossa. Um caso exemplar disso é, com efeito, a história da personagem Ivan Ilitch, escrita por Liev Tolstói (1828-1910) e publicada em 1886. Enquanto jovem, nunca preocupou-se em realizar qualquer esforço de introspecção para examinar a própria vida. Porém, uma doença surge, e o leva inesperadamente à morte, com apenas 45 anos. Chegar ao fim da vida e desconhecer a própria experiência de vida é o retesamento trágico da história de Ivan Ilitch.
Não pense o leitor que se trata de um caso de vida isolado, que poucos são os indivíduos que passam por essa tragédia. De modo realista, o narrador da novela A morte de Ivan Ilitch sublinha que “a história da vida de Ivan Ilicth foi das mais simples, das mais comuns”[i].
Quando a doença faz Ivan aproximar-se cada vez mais da morte, o seu pior sofrimento não é a dor física que lhe inflige, mas sim a necessidade de ter que se deparar com a vida que levava e, a partir desse retrospecto, avaliar a sua experiência de vida. Como Ivan foi um indivíduo que evitou desenvolver suas singularidades, seguindo sempre modelos de vida automática aos quais foi condicionado pelas regras sociais, tal retrospecto lhe aniquilava com uma surpreendente angústia:
“— Não pode ser que a vida seja tão detestável e sem sentido. E se é realmente tão detestável e sem sentido, por que então devo morrer nessa agonia? Há alguma coisa errada”.
“Talvez eu não tenha vivido como deveria”, ocorreu-lhe de repente. “Mas, como, se eu sempre fiz o que devia fazer?”, respondeu, imediatamente descartando essa hipótese; a solução para o enigma da vida e da morte era algo impossível de encontrar.
“Então o que você quer agora? Viver? Viver como? Viver como vivia no Tribunal, quando o oficial anunciava: ‘O júri vai se reunir. O júri vai se reunir!… O júri vai se reunir!’”, repetiu para si mesmo. “Eis a minha sentença. Mas eu não sou culpado”, gritava com fúria. “Para que tudo isso?” E parou de gritar, mas virando-se para a parede pôs-se a repassar a mesma pergunta: Por quê, e qual a razão de todo esse horror?”
Nem é necessário dizer-lhe, caro leitor, que, sem ter desenvolvido uma singularidade própria, a angústia de Ivan cresce até tornar-se insuportável. Ai, que terror! Não há nada que o redima. Apenas vagas recordações de infância, que se equivaleriam as gotinhas de água que Lazaro poderia ter levado ao Rico, possibilitando leve alívio, mas este ainda permanece no ardor do inferno, como nos narram as escrituras evangélicas.
Assim, o narrador salienta que o único consolo encontrado por Ivan são “as alegrias e prazeres da infância”. Esta busca de consolo na infância não deve ser olhada com pouco caso, porque é para esse ponto que viso encaminhar o propósito deste ensaio. Acredito poder considerarmos o consolo na infância como uma proposição universal. Não será difícil ao leitor recordar-se de suas aulas de literatura no Ensino Médio, especificamente na qual estudou o poema Meus oito anos de Casimiro de Abreu (1839-1860), com o seu professor explicando o sentimentalismo exacerbado e a tristeza contemplativa, características de certos poetas da fase romântica da história literária. Se a aula não fora monótona, tenho certeza que os seguintes versos foram difíceis de dissiparem do espírito:
Oh ! que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais !
……………………
Oh ! dias de minha infância !
Oh ! meu céu de primavera !
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã !
Em vez de mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã !
Portanto, é por ser uma preposição universal que o momento da narrativa em que Ivan busca o consola na infância é pungente, permitindo que o mundo estético da novela de Tolstoi se abra para o imaginário do leitor de todos os tempos e de qualquer latitude.
Essa pungência nos faz questionar, assim como Ivan, se a estrutura do mundo é um a priori predeterminado, abrangente, ou se cada um de nós é responsável por nós mesmos:
“Ivan Ilitch via que estava morrendo e desesperava-se. No fundo do coração sabia que estava indo embora e, longe de acostumar-se com a ideia, simplesmente não conseguia entendê-la. O exemplo de um silogismo que aprendera na Lógica de Kiezewetter, “Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal”, parecera-lhe a vida toda muito lógico e natural se aplicado a Caio, mas certamente não quando aplicado a ele próprio. Que Caio, ser abstrato, fosse mortal estava absolutamente correto, mas ele não era Caio, nem um ser abstrato. Não: havia sido a vida toda um ser único, especial. Fora o pequeno Vany a, com mamãe e papai e Mita e Volodya, com brinquedos e um tutor e uma babá; e mais tarde com Kátia e todas as alegrias e prazeres da infância, da adolescência e da juventude. O que sabia Caio do cheiro da bola de couro de que Vanya tanto gostava? Por acaso era Caio quem beijava a mão de sua mãe e escutava o suave barulho da seda de suas saias? Foi por acaso Caio quem se envolveu em protestos quando estudante de Direito? Foi Caio quem se apaixonou? Quem presidiu sessões como ele? E Caio certamente era mortal e era mais do que justo que morresse, mas ele, o pequeno Vanya, Ivan Ilitch, com todos os seus pensamentos e emoções, é completamente diferente. Não pode ser verdade, isto seria terrível demais”.
Imagino o leitor agora ruborizado, pois já notou que a busca de consolo na infância está diretamente ligada ao fato da pobreza de experiências de vida e também ao desconhecimento destas. Sem realizar nenhum esforço introspectivo de analisar a própria vida para poder desenvolver suas singularidades, Ivan recorre a recordações da infância, sem que estas tornem-se efetivamente um bálsamo à sua consciência:
“E ele começou a repassar em sua imaginação os melhores momentos de sua agradável vida. Mas, estranhamente, nenhum desses melhores momentos de sua vida tão agradável agora lhe pareciam o que pareceram na época – nenhum deles, exceto as primeiras lembranças de infância. Lá na infância, havia alguma coisa realmente agradável com a qual seria possível viver, se pudesse recuperá-la. Mas a pessoa que conhecera essa felicidade já não existia; era como a lembrança de outra pessoa. Do período que produziu o atual Ivan Ilitch para cá tudo que parecera, na época, alegria, agora se desvanecia ante seus olhos e transformava-se em alguma coisa trivial e, em alguns casos, até repugnante. E quanto mais distanciava-se da infância e aproximava-se do presente, mais sem sentido e duvidosas eram tais alegrias”.
Esse momento da narrativa deixa-me sempre intrigado. Num primeiro momento é difícil compreender que ao buscar consolo nas recordações da infância, Ivan alivia-se, mas estas recordações jamais tornam-se efetivamente um bálsamo à sua consciência porque ao mesmo tempo lhe trazem o sentimento de que foi desonesto e irresponsável consigo mesmo. Ou seja, as próprias recordações da infância trazem à tona sua incapacidade de aplicar qualquer sentido a sua experiência de vida, e que agora se transformará em pó e será esquecido, com uma vida que não serviu nenhum propósito imaginável.
É como se a infância em si não consolasse, mas voltamo-nos à ela como um ponto de origem, a fim de sentirmos esperança de uma possibilidade de tentarmos tudo novamente, assim como nos expressa o eu-lírico do seguinte soneto de Fernando Pessoa (1888-1935):
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
O pleonasmo do verso “Quem errou a vinda tem a regressão errada” reforça a ideia de frustação que qualquer indivíduo sente ao tentar voltar à infância perdida através de suas recordações. Chamo também a atenção do leitor à expressão “Já não sei de onde vim”, que assinala o fato de, por mais que nos agarremos às recordações da infância, ela mesma como experiência pouco significa.
Os significados de infância, assim como os modos de ser criança, são múltiplos e variáveis, sendo produzidos e modificados pelas condições histórico-culturais que caracterizam as sociedades. O único fato que caracteriza a infância independente do período histórico-cultural é o de que a infância é um processo de iniciação num mundo social, e como tal possui como mecanismo fundamental a interação e a identificação com os outros. Os adultos apresentam-lhe certo mundo — e, para a criança, este mundo é o mundo, ela ignora qualquer alternativa aos padrões de conduta que lhe são impostos.
Ou seja, a criança vive numa situação de extrema dependência. Portanto, como é possível que mesmo assim essa situação seja considerada como um consolo?
Se lançarmos mão dos estudos fenomenológico-filosóficos de Gaston Bachelard (1884-1962), a resposta a esta questão não será tão simples e óbvia. Em seu livro A poética do devaneio, Bachelard debruça-se particularmente sobre a relação entre o devaneio e a infância[ii]. Compreendemos, a partir desse estudo, que todo indivíduo possui “um núcleo de infância, uma infância imóvel mas sempre viva”. Isso porque a imaginação que dá dinamismo às ações infantis, serve como mola propulsora para o devaneio, proporcionando que, “na nossa infância, o devaneio nos dava liberdade”. As alegrias da infância que Ivan Ilitch recorda é, com efeito, essa busca de um período em que o devaneio infantil proporcionava-lhe liberdade; isto que não teve de jeito nenhum quando cresceu. Mesmo a infância sendo uma situação de extrema dependência, esta ainda proporciona ao indivíduo muito mais devaneios que a idade adulta.
Outra personagem importante que nos ajudará a aprofundarmos nossa compreensão sobre os motivos das recordações de infância como consolo é o Professor Borg, protagonista do longa-metragem Morangos Silvestres, o qual teve roteiro escrito e dirigido por Ingmar Bergman (1918-2007). Produzido em 1957, o expressionista escandinavo conseguiu vencer com Morangos Silvestres o Urso de Ouro em Berlim e o Globo de Ouro de melhor filme, conseguindo também ser indicado ao Oscar de melhor roteiro original.
Nossa personagem, que ganha vida com a excelente atuação de Victor Sjöström, faz uma viagem
de carro em busca de uma condecoração que lhe é outorgada por uma importante universidade. No percurso, decide ir visitar uma antiga casa de verão de seus pais, onde passava as férias com os irmãos e irmãs. Aí chegando, logo recorda de sua infância ao se deparar com uma carreira de morangos silvestres.
Deixo ao leitor procurar convencer-se se o Prof. Borg sonha ou devaneia. Acontece que a recordação é um consolo, exatamente como expressado no soneto de Fernando Pessoa. Ao longo da narrativa fílmica, conhecemos os traumas do Prof. Borg, que nos faz entender que essa recordação da infância é central para o filme.
Conforme assinala Bachelard, “o devaneio voltado para infância devolve-nos às virtudes dos devaneios primeiros”, e assim “nos ajudam a acreditar no mundo, a amar o mundo”. Extremamente egoísta, Prof. Borg realmente não via nenhuma beleza ao seu redor. Sua recordação da infância é a recordação da bela Sara, que foi sua noiva, e com a qual não temos dúvida de que imaginava uma excelente vida ao seu lado. Mas este casamento nunca ocorreu, pois seu irmão mais velho rouba-lhe a bela Sara, e a leva em seus braços para muito longe. Nesse caso, não seria uma experiência de vida para nunca mais se recordar?
O prof. Borg, assim como Ivan, representa que a infância em si não consola, de que ela é apenas um ponto de origem, a fim de sentirmos esperança de uma possibilidade de tentarmos tudo novamente, de vivermos nossa vida de outro modo completamente diferente de como a vivemos agora. Não é à toa que Bachelard concluiu que “devaneio é uma fuga para fora do real”.
Então, essas recordações da infância, esta última tentativa de consolo, também seria uma forma de mentir para si mesmo, no sentido de que somente com a vida solapada, por meio de uma degeneração ontológica, é possível querer fazer da infância consolo?
Caro leitor de impulsos instintivos, como seria viver a vida sem considerar suas dimensões ideais? Menos recordações da infância e mais experiências de vida? Não se trata de perguntas retóricas. Cada indivíduo resume toda uma gama de experiências muito pessoais, de modo que, para se apoiar, precisa estender a mão para um sonho, uma metafisica de esperança que o sustente, e que esta possa nos levar até o fim sem que necessitemos dos devaneios primevos de nossa infância.
[i] TOLSTOI, Liev. A morte de Ivan Ilitch. Porto Alegre: L&PM, 1997. As demais citações da novela são retiradas desta edição.
[ii] BACHELARD, Gaston. A Poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. As posteriores citações são retiradas desta edição.