Os princípios da novilíngua e da teletela são estão presentes nas mídias atuais
1984 e Admirável Mundo Novo são dois dos livros mais importantes escritos no século XX, pois tratam do futuro da sociedade, mais especificamente um futuro no qual as pessoas são manipuladas e dominadas por um Estado autoritário.
Escritos como forma de advertência aos governos totalitários vigentes na primeira metade do século passado, os romances se diferem, principalmente, pelo modo que a dominação da população se dá: enquanto em Admirável Mundo Novo a dominação acontece por meio do condicionamento infantil e do uso de drogas, para Orwell, em 1984, ela tem como principal pilar o controle do pensamento através da linguagem, da propaganda e da vigilância constante.
Essa diferença foi tratada por Huxley em uma carta que ele enviou a Orwell, pouco tempo após o lançamento de 1984. Segundo ele, no mundo real, os governantes mundiais irão descobrir que os instrumentos de dominação e opressão semelhantes aos vistos em Admirável Mundo Novo serão muito mais eficientes do que os retratados por Orwell em seu romance. Além disso, há um consenso de que nossa sociedade atual penda mais para Admirável Mundo Novo do que para 1984.
Porém, será mesmo que isso é verdade?
A base da dominação do Partido em 1984 está totalmente presente em nossa sociedade. É importante ressaltar que talvez Orwell não tenha sido tão preciso em relação à forma como se daria o controle através da linguagem e da vigilância nos dias atuais. No entanto, os princípios da novilíngua e da teletela são facilmente identificados hoje através das redes sociais e da internet no geral.
No romance, a novilíngua tem como objetivo impossibilitar a expressão de ideias por parte da população da Oceânia. Isso se dá pela redução do número de palavras existentes no idioma, o que impede a formação de um pensamento que não seja compatível com a ideologia do Partido ou de qualquer tipo de pensamento mais complexo. Porém, se por um lado temos toda a língua portuguesa a nosso dispor para nos expressarmos, por outro somos encorajados a cada vez mais escrever menos.
O Twitter permite apenas 140 caracteres. Você já tentou desenvolver um raciocínio um pouco mais difícil em um tweet? Se sim, sabe que é praticamente impossível. Já o Facebook não tem limite de caracteres, mas o próprio formato do feed de notícias desencoraja os “textões”. A rolagem infinita e a atualização constante, assim como o Twitter, dão um ar de pressa e instantaneidade que claramente não favorece os textos grandes. Além disso, quantas vezes você deixou de ler algo porque tinha que clicar no “Ler Mais”? Portanto, há uma sutil diferença em relação a 1984: as palavras estão disponíveis, você pode formular seus próprios pensamentos, mas é desencorajado a fazê-lo ou estimulado a fazer isso do modo mais breve e superficial possível.
Se na Oceânia, Winston se utilizava de um ponto cego em sua sala para escapar da vigilância da teletela, hoje em dia nós próprios gritamos pra quem quiser ouvir o que estamos fazendo, onde estamos, quais nossos gostos, nossas preferências, pensamentos, opiniões e posições políticas. A ironia fica por conta do Facebook, sem pudor algum ao perguntar “O que você está pensando?”. Aqui, as redes sociais como um todo cumprem essa função. Mas não só elas: ao navegar na internet, muitos sites armazenam os chamados cookies, arquivos que contêm, por exemplo, suas buscas na internet, os sites que você visita, enfim, dados sobre suas preferências de navegação.
Nada melhor para exemplificar o poder desses dados que os sites armazenam sobre nós, usuários, do que algo que aconteceu nos Estados Unidos com a rede de lojas Target. Baseado no histórico de compras e buscas de uma cliente com conta cadastrada no site da empresa, foi possível estabelecer que ela estava grávida. Com isso em mãos, a loja enviou para a casa dela cupons promocionais para produtos relacionados à gravidez. O impressionante é que a gestante, uma adolescente, ainda não havia contado a novidade para o seu pai. A loja descobriu antes que o avô!
Há ainda a questão do monopólio vs. democratização dos meios de comunicação. Em 1984, o que permite ao Partido alterar o passado e construir uma imagem do Grande Irmão infalível, que culmina na suposta prosperidade do Ingsoc, é o total monopólio dos meios de comunicação. Seja na teletela que nunca pode ser desligada ou no jornal impresso, não há espaço para um modo alternativo de enxergar a realidade que não seja aquele propagado pelo Partido. Não há senso crítico porque não existe uma narrativa de mundo alternativa, que funcione como uma antítese e se oponha à narrativa dominante.
Nas mídias tradicionais, esse monopólio já esta concretizado. Grandes veículos de comunicação possuem concessões de TV e rádio, além de jornais e revistas. São os casos do Grupo Globo e do Grupo RBS, por exemplo. Na contramão desse processo, surge a Internet com uma aura democrática em torno de si: ela dá voz aos mais variados grupos e pessoas, principalmente às minorias. No entanto, a tendência é que a Internet se torne monopolizada pelo poder econômico.
Pensemos juntos: cerca de 70% dos brasileiros se informam através do Facebook. Como sabemos, o Facebook instituiu há algum tempo a publicidade paga: as páginas que desembolsam uma grana têm maior alcance nos feeds dos usuários. Ou seja: quem paga aparece mais no feed. Ora, se nos informamos cada vez mais pelo Facebook e empresas pagam por uma maior visibilidade nessa rede, logo estamos consumindo conteúdo e informação de quem paga por publicidade. Tratando-se dos meios de comunicação, mesmo havendo mídias alternativas Internet afora, acabaremos sempre voltando para a velha mídia, que basicamente é quem pode pagar por publicidade, em sua versão online: Folha, Globo, Estadão, VEJA, entre outros. Esses veículos, na condição de empresas que visam o lucro, narram a realidade de acordo com seus interesses econômicos.
A internet permitiu a existência de mídias alternativas, de narrativas alternativas. Porém, a partir do momento que o que chega até nós é cada vez mais influenciado pelo poderio econômico, a mídia alternativa perde espaço: ela não será mais acessada pelo simples fato das pessoas não saberem que ela existe. Não há democratização da comunicação. Ou melhor: ela ainda é muito tímida e chega a uma parcela mínima da população.
É crucial que prestemos atenção nesse processo que está ocorrendo. Graças a Orwell, já sabemos o que acontece quando apenas uma versão da realidade é apresentada à população.