Intervalo: O invasor da madrugada

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Ana levou um susto. De repente, o marido aparece em sua frente, pálido, sem cor, sem vida, com semblante apavorado.

– O que houve, Fernando?

– Você viu aonde ELE se enfiou?

– ELE… ELE quem, Fernando?

– ELE, ora! – respondeu o marido não entendendo por que a esposa fazia aquela cara de incompreensão.

– Vá, me diga Ana, cadê ELE? Onde ELE se escondeu? Você ajudou-O a se esconder?

– Mas ELE quem, Fernando?

– Não se faça de desentendida? Você sabe muito bem de quem eu estou falando? Pelo jeito você aproveitou que eu cochilei e levantou-se da cama, calmamente, sem fazer barulho, a fim de escondê-LO de mim! Mas não adiantou, pois eu acordei! – bufou o marido.

A esposa olha para o marido, perplexa. O que estaria acontecendo? Ele nunca havia reagido daquele jeito por causa DELE!

– Me diga de uma vez, será melhor para você! Não me esconda nada! Aonde você O escondeu? Pare de acobertá-LO!

– Mas eu não estou acobertando!

– Ah! Viu só, você já admite que ELE esteja por aqui! Cadê ELE, Ana?

– Calma, Fernando, já é madrugada, os vizinhos estão dormindo!

– Que se danem os vizinhos, criatura! Você perdeu a noção do perigo?!

– Vamos tomar um café, eu preparo um bem fresquinho para nós!

– Aha! Agora você quer desviar a minha atenção, não é mesmo?

– Eu?! Eu não! Vamos até a cozinha! Você está precisando de um café.

– Estou precisando? Estou é com raiva! – dizendo isso, começou a caminhar pela casa, parecia um louco! – Você sabe que eu preciso encontrá-LO, é questão de honra!

– Sim, eu sei… – murmurou a esposa, começando a preparar o café (bem forte… A noite seria longa) – Vamos, venha tomar um café, fará bem para você.

O marido olhou para a esposa com o olhar desiludido. Enfim, ela havia admitido. ELE estava por ali, escondido. Ou pior, já havia fugido dali, acobertado pela esposa. Dessa forma, ele acompanhou a esposa até a minúscula cozinha que cheirava a café e à gordura do pastel feito para o jantar.

O som da água fervendo interrompeu o silêncio constrangedor que se formou na cozinha. Os olhares do casal se encontraram. Um esperava que o outro tomasse a iniciativa. Ambos sabiam que a conversa seria longa e pesada. Ah… Teriam que tomar muitos cafés ainda. Iriam entrar madrugada adentro discutindo sobre aquele assunto: ELE.

Quem começaria a falar?

Fernando olhou para a esposa. Quando ela começou a mudar o seu comportamento? Andava tão atucanado com o trabalho que nem percebera a mudança. Ana olhou para o esposo e se perguntou: “Qual foi o momento que ELE tinha se tornado imprescindível em sua vida?”

– Eu… – começaram os dois a falar.

– Fale você primeiro. – pediu o marido (ainda restava-lhe um quê de cavalheirismo).

– Não, pode começar. – falou ela. Afinal, ela nem sabia como dizer aquilo. Como falar DELE assim tão abertamente? Embora os dois soubessem DELE, que não era segredo para o casal, era difícil começar um diálogo discutindo: ELE.

– Bem… – começou Fernando, tomando um gole do café forte – Está gostoso. – Ao dizer isso, tentou lembrar-se de qual foi o último dia que havia elogiado qualquer coisa que a esposa tivesse feito. Fazia muito tempo… Muito tempo. Talvez por isso aquela situação houvesse se formado.

– Obrigada. – agradeceu a esposa, contente pelo marido enfim, perceber nela alguma qualidade que pudesse ser elogiada. Porém, ela tinha que continuar a falar – Toda vez que ELE surge é uma alegria para mim. A presença DELE, todas as noites, me faz bem, me acalma e me deixa feliz.

Não era fácil para o marido ouvir essas palavras da esposa. Quem gosta de saber dessas coisas?

– ELE, ELE, ELE! Sempre ELE! – gritou o marido, indo em direção da esposa. Sentia vontade de esganá-la ali mesmo, na cozinha. Misturaria o cheiro da fritura e do café com o cheiro do seu sangue.

A esposa, percebendo a reação enlouquecida de Fernando, explodiu:

– Basta! Pra mim, chega! Quem é você para falar assim DELE? Pensa que eu não sei que você, na calada da noite, sai vagando pela casa à procura DELE? Você também gosta DELE! ELE também te faz bem! – revelou a esposa aos gritos.

Nesse instante, o marido, que caminhava ofegante e enlouquecido para cima da esposa, caiu sentado na cadeira da cozinha. Ela descobrira tudo. Chegara a hora de revelar o seu segredo, as suas vontades, as necessidades, as urgências orgânicas que o seu corpo clamava. Com os olhos baixos, ombros caídos, como se tivesse levado um soco no estômago, o marido rendeu-se à verdade e à sua necessidade física:

– Eu confesso, preciso, necessito, não consigo mais viver sem O… Morfeu.

Obs.: De acordo com a mitologia da Grécia antiga, Morfeu era um dos mil filhos de Hipno, o deus do sono. Assim como o pai, era dotado de grandes asas, que o transportavam em poucos instantes, e silenciosamente, aos pontos mais remotos do planeta. O nome Morfeu quer dizer “a forma” e representa o dom desse deus: viajar ao redor da Terra para assumir feições humanas e, dessa maneira, se apresentar aos adormecidos durante os seus sonhos. É por isso que se costuma dizer, há vários séculos e nas mais diversas línguas: quem cai nos braços de Morfeu faz um sono tranquilo e reconfortante, como se realmente estivesse na companhia dessa divindade. (tio Google).

Até o nosso próximo Intervalo.

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