Intervalo: Pode ser – Cláudia de Villar

0

Atanásio Junqueira Filho era um cidadão pacífico. Calmo de pai e mãe. Tudo aceitava, nada reclamava. Para ele, tudo estava bom. Quando nascera a sua mãe já dissera ao olhar para ele ali, ainda nu: “Ele será Atanásio, para ele a vida será fácil”.

E desta forma, assim crescera Atanásio: o da vida fácil.

– Atanásio, vá buscar a bola que caiu no quintal do vizinho! Pode ser?

– Pode, sim!

– Atanásio, conserte aquele muro ali, depois venha jantar! Pode ser?

– Pode, sim.

– Atanásio, vá ao armazém buscar feijão, arroz, batata, massa, pão, açúcar, café, cebola, alho, pimentão, lentilha, carne, frango, ervilha, margarina, requeijão, azeite, vinagre, creme dental, papel higiênico e tomate.

-Tudo isso, mamãe?

– Ah, tomate não! Está caro!

– Mas trago onde?

– Leve uma sacola, trague tudo na mão. Não pegue condução, tá caro! Pode ser?

– Pode, sim.

E assim vivia Atanásio, o da vida fácil. Certo dia o pai chamou:

– Atanásio, você já está um rapazinho. Está na hora de arrumar uma mulher.

Foram a um bordel: pai e filho.

Os dois entraram, olharam. Atanásio maravilhado ante a expectativa de sua primeira experiência sexual.

– Pegue aquela ali. – disse o pai apontando uma senhora já bem velhinha, gorda, cabelo engordurado, olhos esbugalhados, lábios magros. Pode ser?

– Pode, sim. Aceitou fácil, fácil a sua primeira experiência.

O pai pensou: a mãe estava certa, ele seria um bom menino. Obediente.

O tempo passou.

Atanásio crescera. Já era hora de trabalhar fora.

Foi à procura de emprego.

– Temos vaga de coveiro, pode ser?

– Pode, sim.

E assim ia a vida de Atanásio.

Um dia, Atanásio apaixonou-se.

Queria casar. Tomou coragem e perguntou:

– Quer ser a minha esposa?

– Pode ser. – respondeu a mulher. Era o par perfeito.

Vida de casado não era fácil, dizia a mulher. Mas para Atanásio não reclamava de nada.

– Atanásio! Vá buscar os filhos na escola, dê o almoço, limpe a casa pra mim, dê comida ao cachorro. Pode ser?

– Pode ser.

Atanásio podia tudo: lavava, passava, cozinhava, limpava a casa, abria cova, enterrava cidadão.

A vida não tinha mistério para aquele homem que tudo podia ser.

O tempo continuava a passar e a velhice chegava para Atanásio.

Os filhos foram casando e indo embora. A mulher, envelhecendo ao seu lado e ele continuava aceitando tudo: a vida pobre, a mulher dominadora, o serviço pesado, os amigos da onça…

Tudo. Mas Atanásio nunca teve boca para discordar – aceitava tudo.

Atanásio enterrara a mãe, o pai e dois irmãos, mas nada abalara a vida mansa de Atanásio.

Será que um dia ele iria se rebelar?

Um dia a mulher, já velha, falou:

– To cansada dessa vida. Quero mudar.

-Pode ser. – respondeu Atanásio.

– Quero ir embora.

– Pode ser.

– Quero ir embora sem você.

Nesse dia Atanásio se rebelou! Não queria ficar sozinho! Todos já tinham partido. Só restara a esposa.

Tomou coragem e perguntou (Era a primeira vez na vida que Atanásio fazia uma pergunta. Era a primeira vez que Atanásio se rebelava):

– E eu?!

– Você?!

– Sim e eu?!

A mulher pensa um pouco. Pergunta difícil essa do marido. Nunca ela tinha pensado nele.

Naquele homem. Olhou, pela primeira vez na vida, depois de 50 anos de casados. Era o mesmo Atanásio de sempre. O que aceitava tudo, o que nada reclamava. Mas, pela primeira vez em 50 anos, via o marido perguntar algo. Decidiu responder:

– Ora, vá se olhar no espelho! Você já está velho. Acabado. Está um morto-vivo. Nem devia estar aqui entre nós. Devia estar fazendo companhia aos teus enterrados, lá do cemitério.

Atanásio pensou… Refletiu. Olhou-se no espelho. É, era um velho acabado. A mulher estava certa.

Assinou os papéis da separação. Caminhou até o cemitério. Procurou um lugar pra fazer uma cova. Só tinha um cantinho perto do barranco arenoso. Podia ser ali? Sim, podia. Abriu o buraco.

Olhou para a cova. A sua cova.

A última coisa que Atanásio, o da vida fácil, falou foi:

– Pode ser.

Até o nosso próximo Intervalo.

Não há posts para exibir