Intimidades

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Rubem_Fonseca
Rubem Fonseca

Fígados inchados, corações negros, fetos mal constituídos, cheiro de formol, fêmures, artérias, veias.

Essas são as lembranças que carrego de minha visita ao museu de anatomia da faculdade de Odontologia da Unesp de Araraquara/SP, local onde os alunos são colocados à prova para saberem se escolheram a profissão certa.

Corpos são abertos, expondo as obscenidades grotescas cobertas pela pele enquanto caminhamos com vida. Os órgãos ali mostrados são de indigentes, moradores de rua que padeceram anônimos, alimentando-se de comida azeda e bebendo álcool barato, talvez única fonte de prazer vicioso. Por não ter conhecido esses indivíduos em vida, olhei-os apenas com interesse e respeito – afinal, são homens e mulheres com algum, embora desconhecido, passado.

Agora, depois de reler o conto “Duzentos e vinte e cinco gramas”, escrito por Rubem Fonseca e pertencente ao livro Os prisioneiros, peguei-me a imaginar se, no lugar daqueles anônimos, estivesse algum conhecido, alguém com quem eu tivesse relações afetuosamente íntimas ou até mesmo profissionais.

A história: um empresário, executivo seguro e bem-sucedido, é testemunha da autópsia de uma mulher que foi sua amante em vida. Ali, esse homem é submetido a uma experiência aterradora. Trata-se de um processo automatizado para o legista, com vocabulário mecanicamente técnico, mas extremamente traumático para quem conheceu aquele corpo de outra maneira.

O corpo esbelto e atraente escondia intimidades que não são ligadas à libido, ao prazer sexual. Órgãos têm seus pesos medidos como se fossem mercadorias comercializadas em barracas de feira. Os sons descritos pelo narrador ecoam até mesmo aos ouvidos do leitor: pele sendo rasgada feito papelão, ossos quebrados tais fossem madeira, sangue escoando como chuva.

Ao sair daquela sala, o homem voltou para a sociedade mantendo a aparência segura, limpa e alinhada de outrora. Porém, em seu íntimo, uma substância escura e viscosa foi criada, algo que borbulhará em sua alma para sempre. Rubem Fonseca se utilizou desse produto pertencente à matéria humana (como fez tantas outras vezes) para compor sua galeria de contos brutais, explorando o corpo humano e suas mais secretas secreções.

E, é claro, o leitor também não sairá ileso daquelas páginas.

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