Invadindo casas, revirando gavetas: a profissão do biógrafo

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Entre Literatura e bisbilhotice, a influência das biografias no interesse pela leitura e as biografias no Brasil

Como leitora assídua de Sylvia Plath, após detonar o Ariel novinho da biblioteca da minha cidade, após baixar todos os audio poems do Youtube e decorar como recitá-los igual Sylvia fazia — sem sucesso, é claro —, tão saturada estava eu de seus poemas que resolvi, certa vez, comprar uma biografia sua. De cara, encontrei milhares e, sem entender muito sobre o gênero, escolhi por instinto — entenda-se “pela melhor capa e melhor sinopse”.  Mas a sorte estava comigo. Talvez os deuses “Ovídio”, “Machado”, “Camões” e tantos outros não quisessem que eu caísse em armadilhas e falsas pomposidades literárias. 

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Livro “A Mulher Calada”, de Janet Malcolm

Digo isso porque “por instinto” escolhi um livro pequeno e azul chamado A mulher calada, de Janet Malcolm.  É verdade, o subtítulo “Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia” deveria ter me alertado de que não se tratava exatamente de uma biografia. Deveria. Mas na empolgação de apertar o botão “comprar” e tão logo ter o livro comigo, recebi em casa um abrir de olhos, um aprendizado.

Janet Malcolm — uma das maiores figuras do jornalismo americano —, como um segundo sinal de que aquela não seria uma biografia, incluiu nas primeiras páginas de seu livro um trecho de George Sand, de Henry James, de cuja extensão eu só uso o início para chegar ao meu ponto:

“Tanto o relator quanto aqueles de quem se relata algo precisam saber que detêm as próprias vidas nas mãos. Há segredos vetados à privacidade e ao silêncio.” *

Este era o aviso claro de que A mulher calada não falaria de Sylvia Plath, mas especificamente do modo como a morte de Sylvia, sua figura a partir dela e seu relacionamento com Ted Hughes fora retratado pelas biografias afora.

Por que toda essa volta? Porque eu desejava uma biografia. Uma biografia que me desse detalhes sobre aquela poetisa tão misteriosa, que quebrasse aquela distância fria e impessoal que a morte de um grande ídolo nosso nos traz. Eu queria uma biografia que me dissesse até mesmo que tipo de perfume Plath usava, o que ela gostava de comer no café da manhã, que estivesse lotada de trechos de seus diários pessoais e que, por tanto, trouxesse minha poetisa preferida para o meu lado.  Eu queria a existência de Sylvia Plath destrinchada para mim, sem dó, sem respeito. E vamos lá: esse é o ponto das biografias. É por isso que pessoas compram biografias. Nisso está seu valor. O desejo de tirar aquele ídolo do pedestal, trazê-lo para perto, senti-lo como um mero humano, torná-lo íntimo a nós.

Mas Malcolm me disse que não, logo nas primeiras páginas:

“A biografia é o meio pelo qual os últimos segredos dos mortos famosos lhe são tornados e expostos à vista de todo mundo. Em seu trabalho, de fato, o biógrafo se assemelha a um arrombador profissional que invade uma casa, revira as gavetas que possam conter joias ou dinheiro e finalmente foge, exibindo em triunfo o produto de sua pilhagem. O voyeurismo e a bisbilhotice que motivam tanto os autores quanto os leitores das biografias são encobertos por um aparato acadêmico destinado a dar ao empreendimento uma aparência de amenidade e solidez semelhantes às de um banco. O biógrafo é apresentado quase como uma espécie de benfeitor. (…) Não há nada que não se disponha a fazer, e quanto mais o livro refletir sua operosidade, mais o leitor acreditará estar vivenciando uma elevada experiência literária e não simplesmente ouvindo mexericos de bastidores e lendo a correspondência alheia.” *

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Janet Malcolm

Este não é um texto contra biografias. É um texto disposto a olhá-las pelos dois lados da moeda. Enquanto que a biografia pode ser um produto de bisbilhotice e voyeurismo, ela também pode ser um gênero literário válido quando a enxergamos pelo seu valor de aproximar o leitor de um autor, torná-los amigos e, consequentemente, aumentar o interesse do leitor em sua obra. Fazê-lo ler mais — ou, se tratando de um cantor, por exemplo, ouvir mais de sua música. Inúmeras foram as vezes em que, apenas pesquisando um resumo de vida e obra na internet, meu interesse sobre uma figura expandiu, minha procura por suas obras aumentou e então meu conhecimento, meu mundo, também. Foi assim que, ao descobrir as pinturas imediatas, lindas e exageradas de Toulouse-Lautrec, o pintor anão na vertente no Impressionismo francês, eu me dispus a ler uma biografia sua de quase quatrocentas páginas. A partir da leitura, meu interesse por ele duplicou, de repente eu estava consumindo ainda mais Toulouse-Lautrec, conhecia muito mais sobre a França da Belle Époque e sua história.

Então, ao começar os primeiros rabiscos desse texto, me perguntei de onde vem a polêmica sobre biografias aqui no Brasil.  Não sua origem, mas o âmago.  Não sou perita no assunto, e não vou fingir que sou. Sei que, de um lado, há certa luta pela privacidade. De outro, o respeito à liberdade de expressão. Os dois lados são válidos. Mas uma versão de eu mesma, mais questionadora, acho, me enfrentou. Se as celebridades, se os famosos, são capazes de ler seus nomes em produções de quinta categoria destinadas a espalhar mexericos ao público e entender que contra elas pouco pode ser feito — tanto que as bancas estão sempre lotadas de publicações do tipo “O Fuxico” —, por que lutar contra biografias, produções essas mil vezes melhores em termos de qualidade, conteúdo e referência?

Claro, não são todas. Mas — como leitora e como alguém que respeita o direito à individualidade e, ainda assim, vê algo válido em biografias — entre biografias e revistas de fofoca, fico com biografias.

A polêmica gira em torno do termo “biografia autorizada”. Aqui no Brasil, várias figuras públicas entendem que, com esse termo, são elas que dão a última palavra. Ainda com Malcolm, “(…) como sabe todo aquele que já tenha ouvido falar da vida alheia, ninguém ‘é dono’ dos fatos de sua vida. Esse direito de propriedade nos escapa quando nascemos, no momento em que começamos a ser observados.”*  Parece-me que o papel de autorizar uma biografia ou não tem de estar com o público leitor, não com o biografado. Pois o público tem de ter a maturidade de entender que nem tudo o que uma biografia apresenta sobre alguém é estritamente verídico. Ainda assim, cabe ao público o direito de escolha. Tem de haver opções.

 

* Os trechos tirados do livro correspondem à tradução de Sergio Flaksman, pela editora Companhia das Letras.

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