É isso mesmo. Iracema, um romance de fundação brasileiro, escrito pelo romântico e ultranacionalista José de Alencar, vai muito além da mera exaltação das belezas da pátria. Não que não haja idealização da natureza e do povo brasileiro dentro da obra. No entanto, uma vertente pouco explorada do romance, que talvez seja a mais interessante, é justamente uma crítica forte e sutil à formação do Brasil.
Devo atribuir os devidos créditos dessa interpretação ao professor João César de Castro Rocha, com quem tive a honra de ter aulas de literatura brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Segundo seu raciocínio, a trilogia indianista de Alencar é uma tentativa de reconstituir as origens brasileiras, numa proposta romântica de valorização do país. Relembremos que, no século 19, com a independência do Brasil, os escritores românticos se preocupavam em definir uma literatura nacional, com elementos típicos da cultura brasileira, daí os romances regionalistas e indianistas. Então, temos, nesta ordem, a trilogia indianista alencariana:
– O Guarani (1857) – O romance se passa na época colonial. Estão presentes o português, o índio e o negro. Há a paixão entre o índio Peri e a brasileira, descendente de portugueses, Cecília. Após um conflito entre índios e colonizadores, a casa da família de Ceci explode e esta foge com Peri, que foi incumbido pelo pai da moça de salvá-la. Os dois enfrentam um dilúvio e conseguem sobreviver, fundando a população brasileira, num final patriótico, porém marcado pelo desastre;
– Iracema (1865) – Voltando mais um pouco no tempo, remonta à época do descobrimento. Iracema, a “virgem dos lábios de mel”, apaixona-se pelo colonizador Martim e desobedece as tradições de sua tribo para ficar com ele. Os dois têm um filho, Moacir. Abandonada e fraca, Iracema morre pouco tempo após dar à luz. Os portugueses começam a colonizar o litoral. A obra termina como começou: Martim e seu filho à deriva no mar. Novamente, o elemento final trágico não consegue ser evitado;
– Ubirajara (1874) – Aqui, reduz-se ao máximo a complexidade social, quando o Brasil era habitado somente por índios. Ubirajara é o herói da tribo araguaia. Ele se apaixona por Araci, princesa da tribo inimiga dos tocantins, porém é prometido à Jandira. Antes que seja declarada a guerra entre os tocantins e os araguaias, as duas tribos se unem para combater os tapuias. Ubirajara vence a guerra e funda uma nova tribo. A aparente harmonia final é quebrada pela última frase do livro, que nos mostra que os portugueses chegaram àquela área e exterminaram a população indígena tempos depois.
O projeto, portanto, foi frustrado. Chega-se à conclusão de que é impossível recontar a história brasileira sem uma origem conflituosa. Não existe na sociedade brasileira um relacionamento harmônico entre as diferentes raças. O que predomina é uma história de fundação marcada pela dominação e genocídio.
A cena de Iracema amamentando o filho com seu leite e seu sangue é bastante simbólica: a índia dá toda sua energia ao filho; da mesma forma, o colonizador extrai os produtos naturais da colônia até “sangrar” a terra. Os nomes em si já carregam um significado importante: Iracema é o anagrama de América e Moacir é o filho da dor.
Se os heróis Iracema e Martim simbolizam a “melhor índia” e o “melhor português”, que deram origem ao primeiro brasileiro, Moacir, eles também não são isentos de falhas. Iracema trai seu povo e escolhe ficar ao lado do colonizador, que, por sua vez, se cansa da vida ao seu lado e a abandona para ir à guerra. Quando ele volta, já é tarde demais: Iracema está morta, de cansaço e de tristeza, tendo deixado apenas o filho. Ora, o Brasil foi uma colônia de exploração: nossa natureza foi devastada e nossos índios exterminados; mas, por complexo de vira-lata, até hoje tendemos a nos apoiar nos moldes dos povos “civilizados”; nossa independência nunca foi completa.
No famoso poema de Gonçalves Dias, Canção do Exílio, já podemos perceber essa cultura da alteridade. O Brasil é exaltado não por elementos que têm exclusivamente, mas por ter a mais aquilo que os outros países também possuem: “mais estrelas”, “mais flores”, “mais vidas”, “mais amores”. O único elemento genuinamente brasileiro no poema é o “Sabiá”. Só existimos na comparação com o outro, que serve de espelho para nossa cultura.
Canção do exílio
Gonçalves Dias (1847)
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer eu encontro lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar – sozinho, à noite –
Mais prazer eu encontro lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
O começo de Iracema, que antecipa o final, é bastante significativo nesse sentido: Martim e Moacir numa jangada à deriva no mar, colonizador e colonizado sem rumo certo. No Brasil, fica apenas a promessa de um futuro glorioso, pois os portugueses supostamente trarão o progresso e a civilização à terra. Após o extermínio do povo autóctone, a que custo e em que condições obteremos esse progresso?
Iracema pode, dessa forma, ser interpretado como um romance subversivo, se considerarmos seu caráter de denúncia. Alencar constrói aqui um Romantismo crítico, e não ingênuo, como se pode pensar em uma primeira leitura superficial. Na obra, o Brasil já é representado como um país do futuro, de um futuro que nunca chega. Um país, que na verdade, nunca nasceu. Frutos de uma miscelânea de línguas e culturas, somos órfãos de pátria em nosso próprio território, carentes de uma identidade própria, que buscamos até hoje na alteridade.
Iracema
José de Alencar
Série Bom Livro