“A verdade é que existem muitas maneiras de ler uma obra literária, de fato, mas há limites mais restritos acerca do que é ou não feminismo”
Quando li, semana passada, o texto escrito e publicado aqui no Homo Literatus, fiquei pensando em uma maneira de ampliar a discussão, mesmo tendo, a priori, ficado incomodada com algumas leituras feitas da obra (embora muitos leitores tenham me enviado o link pedindo uma retaliação – danadinhos!).
A verdade é que existem muitas maneiras de ler uma obra literária, de fato, mas há limites mais restritos acerca do que é ou não feminismo. Por isso, acho crucial lembrar que o feminismo precisa ser feito pelas mulheres e guiado por elas – daí, um texto falando sobre feminismo, feito por um homem, já começa a ficar encrencado, pois o protagonismo, a definição do movimento e da opressão só podem ser legitimados pelas mulheres.
Por isso, na obra da Jane Austen, como um todo, já temos um elemento importante: uma mulher escrevendo para outras mulheres sobre a opressão sofrida por elas naquele contexto histórico. A partir daqui, temos outro ponto importante: não adianta querermos, hoje, 2015, em que a luta já avançou mais de dois séculos, olharmos para trás e, com este olhar, dizer se Lizzy, Elinor, Marianne, Jane, Emma, Anne, Fanny ou qualquer personagem é feminista. Precisamos olhar o contexto histórico de produção da obra.
No século XIX, romances eram feitos para distrair mulheres que eram sutilmente condenadas a passar suas vidas presas a rotinas essencialmente domésticas, guiadas por homens, casadas, tendo nenês, ouvindo sermões de conduta de Fordyce ou qualquer outro desses. Mulheres que temiam a morte dos homens da família e que viam no casamento a forma de continuar com um teto e um sustento, muitas vezes.
Para essa mulher, ler Jane Austen e ver Elizabeth Bennet andando algumas milhas até onde sua irmã está sozinha, sem homem e sem medo de parecer pouco engomada perante os aristocratas é revolucionário. Uma mulher que vivia esta vida, ao observar Lizzy recusando duas propostas de casamento extremamente vantajosas (do ponto de vista legal) por valores individuais como não querer casar com alguém patético ou extremamente arrogante, se torna alguém com um leque de opções bem maior e mais diversificado. Isso para não falar sobre as outras obras, como Emma, em que a protagonista afirma que não quer se casar pois já é rica e não precisa disso (e se casa com o melhor amigo, por estar apaixonada e não por se preocupar com a fortuna) ou ainda Razão e Sensibilidade, em que Elinor se casa com Edward Ferrars após ele ser deserdado, colocando o casamento por amor acima do status social. A obra de Austen é feminista na medida em que aponta caminhos de desconstrução de ideias – não à toa, chegou a ficar mal vista durante algum tempo e não ser “leitura de moça de família”.
Não quero entrar no mérito das comparações que foram feitas (Cinquenta tons de Cinza como novela de costumes, Elizabeth como Cinderela), pois quero acreditá-las como irônicas e não vou levá-las a sério – e assim acho que a leitura deve ser feita: com certa leveza para não acumularmos ranço desnecessário.
Apenas gostaria de dar, como fã absoluta desta inglesa e como alguém que passou dois anos e meio lendo sobre ela e sobre feminismo, o meu pitaco sobre o porquê de a obra se manter atual. Primeiro, não acredito que seja por falar de casamento em si, para as mulheres que buscam a história de amor, mas sim pela ideia de uma relação de respeito e igualdade. Darcy aprende a ver que Lizzy é uma pessoa e não sua família e suas conexões e, apaixonado pela pessoa, dedica-se a ela e não a esconder a vergonha que sente de seus parentes inconvenientes. É uma vitória de indivíduos sobre uma sociedade hipócrita e interesseira.
E, por fim, é por que a luta não acabou. Andar sozinha na rua ainda é um ato de mulheres corajosas, assumir a própria opinião ainda pode ser mal visto, acesso ao mercado de trabalho não significa igualdade de salário, não se casar ou não ter filhos é uma decisão que sempre acaba vindo cercada de perguntas que eram feitas há tantos anos e séculos atrás, se preocupar com a aparência ainda é visto como um dos afazeres da mulher. Enquanto isso não mudar e não houver esforço efetivo do reconhecimento dessa abissal desigualdade entre homens e mulheres (cis e trans, que fique bem claro), Austen será brutalmente atual em seus apontamentos.