Joan Didion, Vanessa Redgrave e a dor no centro da vida

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Joan Didion, Vanessa Redgrave e a dor no centro da vida

A escritora Joan Didion e a atriz Vanessa Redgrave produzem arte a partir de suas dores em “O Ano do pensamento mágico”.

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Joan Didion e Vanessa Redgrave

Joan Didion

Emblemática, puro anos 60, o cigarro em uma das mãos, o vestido de malha a deslizar pelo corpo pequeno. No rosto, o ar de quem sabia estar no lugar certo, na época certa.

Assim tracei o caminho para chegar pela primeira vez ao documentário The Center will not hold, produção da Netflix dirigida por Griffin Dunne, um relato sobre a vida e o trabalho de sua tia, a escritora e jornalista americana Joan Didion, ícone precursora do Novo Jornalismo.

Na tela da TV, as mesmas mãos que, na foto impactante, exibiam o cigarro, movem-se como se tocassem o indizível. Mas não há nada que Joan não seja capaz de expressar, seja com palavras, com sua introspecção ou com o olhar a dialogar com a fragilidade do corpo, transmutando-se em vigor.

A mesma dualidade fascinante que me guiou até o filme.

Com delicadeza, Griffin e Joan conversam sobre os eventos tortuosos de suas memórias, chegando a dois dos maiores obstáculos aos quais ela sobreviveu:

Em 2003, Quintana Roo, sua filha única, amargou uma longa internação causada por uma enfermidade desconhecida. Na noite de 30 de dezembro, depois de voltar da visita a ela, John Gregory Dunne, marido de Joan e escritor, não resistiu a um ataque cardíaco fulminante.

O ano do pensamento mágico

Dois anos depois, Joan voltou à literatura contando sobre sua perda no corajoso O ano do pensamento mágico, de uma maneira particular e universal, tirando das sombras o que muitas vezes temos medo de verbalizar.

A vida muda rapidamente. A vida muda em um instante. Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina. A questão da autopiedade.
Estas foram as primeiras palavras que escrevi depois do que aconteceu”

Ao invocar o termo “pensamento mágico”, em um livro que é um rasgar de sentimentos e espanto diante do fim, Joan explicita o que tanto a psicologia quanto a antropologia definem como a crença no poder que um desejo tem de mudar as consequências e as piores transformações do mundo externo.

Sabemos que alguém perto de nós pode morrer, esperamos sentir um choque, mas não esperamos que este choque desloque nosso corpo da nossa mente. Esperamos ficar prostrados, inconsoláveis, loucos com a perda, mas não imaginamos que vamos ficar completamente loucos, acreditando que o marido vai voltar precisando de seus sapatos.”

Infelizmente, as convicções derramadas por Joan em seu luto não impediram que, menos de dois anos depois do pai, Quintana também viesse a falecer, deixando-a sozinha e imersa no sentimento de culpa que ela destrincha para a câmera que a acompanha durante o filme.

 “Era adotada, tinha sido dada a mim para que cuidasse dela, e falhei

Como voltar a pertencer ao mundo quando somos quem restou?

Vanesssa Redgrave

Em 2007, Joan adaptou O ano do pensamento mágico para o teatro. Em sua primeira montagem na Broadway, a peça teve como protagonista a atriz britânica Vanessa Redgrave. Tudo sobre o livro foi reimaginado para a peça, segundo Vanessa, que, mais do que interpretá-la, deu voz a Joan, a esposa e agora também mãe em luto.

Sozinha no palco com uma cadeira e apenas um movimento durante toda a peça, a definição de tragédia que uma vez Vanessa ouviu de Jean Cocteau brilha em seus olhos azuis: quando ela acontece é como se desafiássemos os deuses.

E não somente eles.

Ao dividir suas dores, Joan desafiou todos os nossos tabus e recusas em relação à morte e estabeleceu conexões com cada um de nós que já passamos pelo mesmo vazio.

Unidas pela dor

Em 2009 a filha de Vanessa, a também atriz Natasha Richardson morreu depois de um grave acidente de esqui no Canadá e, em um trecho do documentário, ela e Joan dividem lembranças em comum de suas rebentas.

Duas potências criativas unidas pela pior dor de uma mãe, apoiando-se na arte em uma cena que nos transporta às palavras de Joan sobre colocarmos a dor no centro do nosso coração, das nossas lágrimas, da nossa fragilidade para que dela nós possamos nos fortalecer e, acima de tudo, sobreviver.

Quando eu estava escrevendo o livro, eu não sabia se eu iria sobreviver. Quando eu estava escrevendo a peça eu sabia que eu tinha sobrevivido

Leia um trecho de Sobre ter um caderno, de Joan Didion

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