Conheci Guimarães Rosa numa aula da PUC, Literatura Brasileira: Prosa, uma eletiva de Letras do professor Júlio Diniz. Lemos Machado, Clarice, Graciliano, Zé Rubem (o mais fantástico do curso foi ter aprendido a chamar os grandes na intimidade) e Guimarães Rosa, com A terceira margem do rio. Pense no filme Matrix, quando colocam o Neo na cadeira, enfiam um espeto na sua cabeça e o conhecimento é injetado instantaneamente; ler Guimarães Rosa foi, e é, aquilo.
A terceira margem do rio foi publicado na coletânea Primeiras Estórias, em 1962, coleção onde o autor continua suas representações do sertão. O conto tem uma trama primária: um belo dia, um pai de família larga tudo e passa a viver numa canoa dentro de um rio, sem nunca mais atracar ou dar qualquer explicação. Narrado em primeiro pessoa pelo filho do barqueiro, o relato acompanha as consequências da atitude do pai: a decadência da família e a angústia do filho.
Guimarães Rosa tinha algo de extraterreno. Era um adorador de idiomas, conhecia e estudava dezenas, e sua literatura é esse liquidificador de gramáticas, sintaxes, sotaques e neologismos. É covardia; como um pianista ter seis mãos ou um jogador de futebol com quatro pés. Uma curiosidade: mesmo sendo um mestre em criar nomes, nenhum personagem é nomeado no conto, o que o deixa ainda mais etéreo.
Chegamos então nas questões simbólicas do conto. Num mundo, ou melhor, num universo onde a dualidade é lei (positivo/negativo, luz/escuridão, vida/morte), que terceira margem é essa? Qual é esse novo vértice? Como alguém pode encontrar esse lugar impossível e ainda passar a vida lá? E esse rio, meus deus, o que significa esse rio?
Não sei e lembro de Bob Dylan. Joan Baez desperta com o teleque-teque da máquina de escrever e encontra o namorado escrevendo alucinado em plena madrugada. Ele percebe a mulher e fala, sem desviar do papel: “Babe, isso aqui é muito louco. Todo mundo vai perguntar o quero dizer, mas eu só escrevo; não faço a mínima ideia.” E continua com o teleque-teque.
Passamos por Matrix, acrescentamos Bob Dylan e, para finalizar, sugiro Chacrinha, por favor, não esquecendo que o tema ainda é Guimarães Rosa. Pois Chacrinha veio para confundir, e não para explicar. Assim como o escritor mineiro e todos os gênios como ele. Porque boa literatura traz respostas, mas a grande literatura levanta perguntas.
Trecho do conto A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa:
“Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.”
Trecho do conto O mistério de Barra Pequena, de João Vereza:
“Naquela manhã, Lauríssima estava tão linda que chegar perto seria como quebrar encanto. Preferi voltar pra minha vida; tudo o que tinha que acontecer ia acabar acontecendo. Sem pressa, como em pescaria. Escolhendo o anzol, medindo o fundo, preparando a isca. Não tem nada pior do que perder um peixe bom por falta de paciência. Andando para o mangue, com o pé no chão e o boné pelo caminho, ainda deu pra ouvir o sino rouco da igreja. Era a certeza de que Padre Benigno estava sempre por perto. Tinha chovido muito na noite de ontem, muita água caiu lá de cima. E muita água é muita lama, muito caranguejo. Hoje o balde ia voltar cheio de dar gosto.”
João Vereza, 34 anos, é carioca e mora em São Paulo desde 2006. Redator publicitário, foi vencedor do Prêmio Sesc 2012/2013, com o livro de contos Noveleletas (Record), este também finalista do Prêmio Jabuti 2014.