Kafka, a lei e nós

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O que podemos compreender (ou não) sobre Política a partir de Franz Kafka?

1234460026-large2Você certamente já passou por uma situação kafkiana. Basta lembrar de algumas forças que nos afetam diariamente, mas cuja inteira compreensão ou possibilidade de intervir nos escapa. Para a maioria das pessoas, os movimentos do setor financeiro e do poder judiciário são indecifráveis, puro enigma, a despeito do impacto que eles produzem em suas vidas. O cenário fica mais obscuro quando nem mesmo os representantes dessas esferas são capazes de entendê-las. Em Capitalism: a love story (2009), documentário dirigido por Michael Moore, o estadunidense vai à Bolsa de Valores de Nova York com uma questão aparentemente simples: o que são derivativos? Para sua surpresa, tanto os águias da Bolsa quanto, na sequência, professores universitários não conseguem chegar a uma resposta. A confusão se instaura, e termina em intrincadas equações. Nas últimas semanas, atmosfera similar tem tomado a política brasileira. Independente de sua posição no atual estado de coisas, talvez tenha encontrado dificuldades em absorver, consciente da dimensão e dos efeitos, todos os acontecimentos que parecem atropelar as páginas e telas dos jornais. Tampouco é tarefa fácil reagir a eles. Nos dois casos, proliferam-se incógnitas.

Espanta verificar que a raiz disso tudo já estava esboçada nas obras de Franz Kafka, no começo do século XX. Já estava lá a sensação de impotência diante de algo maior que nos acomete, sem origem e explicação tangíveis. Em razão disso, vale resgatar algumas eventuais lições do escritor tcheco contidas numa de suas mais geniais parábolas, aquela que leva o título Diante da lei. Talvez, com isso, nosso olhar ganhe em acuidade nesses tempos urgentes e sombrios.

O enredo é simples, e pode ser resumido em poucas linhas. Um homem do campo tem a entrada na lei obstruída por um porteiro. Para quem pensava a lei como acessível a todos e a qualquer hora, uma primeira frustração lhe dá sinal de que a ordem da cidade não é bem a imaginada. A porta está aberta, e continua sempre aberta, mas a entrada não é permitida no momento. Observando a insistência do homem simples do campo, o porteiro lhe oferece um banquinho. Ali o homem senta. Os dias passam, os anos passam, e o homem envelhece. Como ato derradeiro, já quase cego e surdo, concentra suas últimas energias, e pergunta: “Todos aspiram à lei – diz o homem. Como se explica que em tantos anos ninguém além de mim pediu para entrar?” (p.106). Ao que o porteiro responde, finalizando a parábola: “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a” (p. 107).

A lenda do porteiro, como o autor a chamava, aparece publicada em três momentos e lugares diferentes. Primeiro, em 1916, na coleção expressionista O juízo final, depois, em 1917, no volume de contos Um médico rural, e, por último, na versão definitiva de O processo, ainda que inacabada e editada pelo amigo Max Brod, em 1925. No romance, a narrativa vem inserida em seu nono capítulo, Na catedral, momento decisivo no qual o capelão da prisão, numa igreja gótica, conta a história a Josef K., e debate com ele seus possíveis significados. As várias publicações atestam o que já era sabido: a “lenda do porteiro” não é somente uma das narrativas mais contundentes de Kafka, mas também figura entre seus textos preferidos, um dos poucos que ele quis preservado da destruição que encomendou ao restante da obra. Outro dado que merece atenção é a inversão do uso comum das parábolas. Uma parábola costuma apresentar, ao final, um ensinamento de vida ou, assim como nas fábulas, uma moral da história. Esse traço primevo do gênero, Kafka não deixa em evidência, para não dizer que ele o suprime efetivamente. Em suas obras, a mensagem é alusiva, cifrada, não se entrega nas primeiras leituras.

São três os eixos básicos da trama: a lei, o homem do campo e o porteiro. Da lei, é indispensável dizer que sobressai sua ambivalência. Ela tem uma face dupla composta, de um lado, por seu aspecto abstrato e universalizante e, de outro, pelo elemento concreto e particular. Este, condensado na pessoa do porteiro e na sugestão da porta, impede o acesso àquele. A lei é um direito e, ao mesmo tempo, uma barreira. Ou seja, tal jogo entre projeção e realidade ocasiona a interdição do homem simples ao que lhe deveria ser garantido. Se comparado ao caso brasileiro, não é exagerado perceber como o discurso amplo e inclusivo da Constituição Federal esbarra nos números alarmantes de analfabetos funcionais que sequer podem lê-la. Assim como na parábola, nem é preciso o recurso à violência física, à repressão. A burocracia, a distância e a nebulosidade das instituições dão conta de dissuadir ou cansar os mais perseverantes. Restando a perplexidade.

O homem do campo, por sua vez, espera da lei o que a modernidade teria de avançado a oferecer – ordem, justiça, isenção, tratamento igualitário –, porém tudo lhe é negado já no princípio. Em vista disso, recorre à moeda de troca antiga do suborno. Estratégia igualmente malograda, pois tanto as vias legais quanto as ilegais em nada ajudam. Nem contrato, nem pacto. Apenas a impossibilidade quase fatalista de mudar o curso das coisas. Para isso corrobora o terceiro eixo, o porteiro. Ele é o agente a serviço da lei; instância que ele talvez não compreenda plenamente, mas da qual tem noção do poder, inclusive consciência da autoridade de sua função. Sua presença imponente despista a atenção do homem do campo, confinando este ao obstáculo, à dúvida e ao fracasso.

Segundo Modesto Carone, tradutor e importante comentador de Kafka, o sujeito tipicamente kafkiano é aquele “minado pela insegurança, pelo profundo embaraço e sobretudo pelo não-saber-o-que-fazer” (p.77). Esse é o sentido da alienação em Kafka. Vivemos em grandes bolhas administradas, sob os caprichos de hierarquias e instituições fechadas. Vivemos, muitas vezes, hesitantes, indecisos, acuados. E a culpa – querem nos fazer acreditar – é nossa. A porta está aberta, mas nós não entramos; a lei é para todos, nós é quem não sabemos acioná-la. Semelhante mecanismo está na base das justificativas desse sistema representativo que dá sinais nítidos de falência a cada ano, a cada nova eleição. Qualquer passo em direção à participação encontra fortes resistências, pois as decisões devem ser tomadas por pessoas especializadas, altos funcionários. Dessa maneira, ações elementares da vida social são delegadas para órgãos que operam com uma racionalidade estranha, alheia às necessidades dos homens e mulheres comuns. E é dessa racionalidade absurda, que beira o sonho, que Kafka trata, ironiza e desnaturaliza.

Referências

CARONE, Modesto. Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

KAFKA, Franz. Essencial Franz Kafka. Introdução e tradução de Modesto Carone. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.

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