Lanterna Mágica: autobiografia de Ingmar Bergman

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Bergman

No fim da década de 80, Bergman (1918 – 2007) escreve de forma meticulosa e com certo lirismo sua autobiografia. A infância perpassa este livro, no sentido de serem abundantes as passagens relacionadas para esta instância preponderante à constituição do psiquismo, não só de Bergman, mas da humanidade, de acordo com a psicanálise. Esta constituição fundamental psíquica estabelece o modo como se interpreta as recordações. A abordagem possibilita aprofundamentos acerca da pré-história do indivíduo; já que o ser humano é o que se lembra, mas, principalmente, o que esquece. Porém, o foco aqui é a forma como Ingmar trata a sua história.

O livro é um amálgama de sentimentos que vincula o leitor emocionalmente ao mundo bergmaniano, de forma vigorosa. A genuinidade do artista sueco não se mostra no livro em si, mas na sua generosidade em oferecer, em uma pulsão instigante, sua existência de modo explícito para o público.

Logo nas primeiras páginas, Ingmar Bergman sintetiza sua infância:

É verdade que penso nos meus anos de infância com prazer e curiosidade (…). A prerrogativa da infância: transitar livremente entre a magia e o mingau de aveia, entre o terror sem medidas e a alegria explosiva. Não havia nenhum limite, a não ser as proibições e as regras, que eram como sombras, quase sempre incompreensíveis.

As lembranças jorradas da infância, por vezes, aparentam não terem sido escritas por um homem de quase 70 anos, mas por um menino. O menino que percorreu as experiências do ser adulto sem desaparecer.

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Bergman e sua mãe

Com pai pastor sendo estandarte da moral e dos bons costumes; exercendo um temor reverencial, e mãe que explodia em rejeição apenas em relação a ele; já que os outros irmãos não recebiam um tratamento desprezível – não na magnitude de Bergman -, assim, ele se refugiou nas fantasias. Forjou-se em mentiras, como meio de resistência àquela atmosfera; ecoando no seu ser artista. A imaginação, a criatividade do pequeno Bergman teve sua canalização no exercício do teatro de marionetes e pelo cinematógrafo (conquistado a partir de uma troca com o irmão: seus soldadinhos pelo cinematógrafo) e sua lanterna mágica.

A pessoa mais amada por Ingmar Bergman foi sua mãe, Karin. O amor transbordante de um e a não reciprocidade do outro latejou até o começo da velhice de Bergman; quando, depois da morte da mãe, analisou, indagou e vislumbrou justificativas para o não amor (não só da parte de sua mãe, mas do resto da família).

Possuímos máscaras em vez de rostos? Possuímos histeria em vez de sentimentos? Possuímos vergonha e culpa em vez de ternura e perdão? (…) Algumas vezes ternura. Sempre dever.

Configuram-se, neste livro, as experiências de Bergman no campo do teatro, de maneira até surpreendente, pois Ingmar Bergman é reverenciado mundialmente como um dos grandes homens do cinema, mas este homem mostrou sua relação pungente com a arte cênica, desde muito cedo. Tornando-se, na década de 40, o mais jovem diretor de teatro da história da Suécia. Praticou a marcha ritualista, dessa vertente artística, com afinco, temor e perfeccionismo. Uma comunhão irresistível e irreversível influenciada fortemente pelo grande dramaturgo sueco August Strindberg.

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A arte de Bergman é – mais no panorama cinematográfico, já que é o registro contundente que ficou para a atemporalidade da arte – por vezes, erótica; em sentido amplo e sem estereótipos. Ou seja: erótica porque desnuda sem pudor a humanidade. Não a humanidade dual (uma parte selvagem e outra civilizada), mas a pluralidade de seres dentro de uma pseudo personalidade. Hermann Hesse, em O Lobo da Estepe, versa sobre essa ilusão dualista, tão própria do ocidente, dizendo: “divertida e multíplice é o jogo da humanidade: a ilusão que levou milhões de anos para ser descoberta pelos hindus é a mesma ilusão que aos ocidentais custou tanto para custodiar e fortalecer’’.

Mas percebe-se que os anos de pressão religiosa, imposição dogmática imprimiram sutilmente em Bergman, em determinados períodos, certa dificuldade de uma abertura mais libertária e menos calejada pela religião, um pouco no sentido artístico (teatro), afetivo e sexual (principalmente na juventude); apesar de suas investidas um tanto categóricas e subversivas. Exercitando a liberdade torturante, em toda sua dimensão, durante toda a vida.

A trajetória de Ingmar é bastante oscilante, mas a mais explícita oscilação se apresenta no tocante às suas relações amorosas. Ele discorre, entrelaçando outros acontecimentos relevantes, com rápidas pinceladas, sobre seus relacionamentos confusos, intensos, curtos, frutíferos… Seja com as atrizes Harriet Andersson, Liv Ullmann, ou com a pianista Käbi Larete.

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Liv Ullmann e Bergman (o belo romance não é apreciado devidamente no livro)

Na estratificação da arte em Bergman (teatro/cinema) não existia competição. Uma simbiose emergia, ou seja, uma espécie de mutualismo artístico dançou sincronicamente na genialidade bergmaniana.

Para quem conhece seu percurso no cinema, é fascinante descobrir a voz do eco, isto é, a intimidade dos seus filmes, os bastidores. Mesmo que a passagem por esses meandros não se apresente minuciosamente, e não contemple inúmeros filmes significativos. Portanto, esperar uma apreciação digna dos seus filmes é frustrante, pois o adentrar profundo de Bergman, neste livro, evidencia-se na mais cruel das artes: o teatro.

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Ingmar e Ingrid Bergman nos bastidores do filme Sonata de Outono (relação profissional com Ingrid relatada no llivro)

A sinuosidade cinematográfica bergmaniana é expressada altivamente no livro Imagens (uma espécie de fotobiografia, mostrando-se como uma compilação de entrevistas de Bergman; redigida por ele em 1990).

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Livro: Lanterna Mágica: Autobiografia de Ingmar Bergman

Com uma tímida passagem metalinguística, Bergman jorra um pouco da complicação que é expressar o que a palavra mal consegue suportar, acolher, como sua comunhão com uma de suas esposas, Ingrid Bergman (não a atriz). Foi sua companheira no conturbado período em que teve problemas com impostos. Desta forma, a Lanterna Mágica é cheia de fissuras; mesmo pelo motivo de Ingmar ser bem autocrítico, mas os relatos do livro suprem e ultrapassam, em certa medida, a curiosidade daqueles eufóricos e devotos do homem que existiu para ser imortal.

Lanterna Mágica: autobiografia de Ingmar Bergman

Ingmar Bergman
Editora Cosac Naify
320 págs.

 

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