De quando os latidos viram linhas
Todo animal encontra um humano inofensivo que o estenda a pata, e também um autor que se comova dele e o dedique algumas linhas. Rubem Braga preferia um passarinho a um conde, talvez quisesse uma carona nas asas do pequeno; Mariana Ianelli fez breves anotações sobre um tigre, após ter conversado com um; o Luís Henrique Pellanda já escreveu sobre chorar por um urubu, inclusive apresentou a família deste aos leitores. Carlos Drummond de Andrade também tem crônicas animais, desde aquela em que comentou da cuidadosa busca de um homem por seu cavalo, da qual soube graças a uma nota de jornal, ou de uma besteira cotidiana que compartilhou com “um cão das minhas relações”.
Esses encontros com animais me lembram de uma vez que liguei para o meu avô paterno antes de viajar pra casa dele. Eu precisava de um lugar pra dormir e perguntei se tinha espaço na casa do cachorro. “Isso você vai ter de conversar com o cachorro”, ele disse. Nunca teve problema, não apenas por eu cuidar das minhas pulgas, mas também porque meu avô não tem cachorro. Quer dizer, tem a mim, mas já se acostumou comigo; e na falta de uma casa propriamente de cão sei que poderia me emprestar um giz pra eu desenhar minha cama no chão.
Por razões estranhas, acho que enquanto humanos estamos perto demais dos cães. Talvez seja a cara boba deles, ou a cara de pidão com aqueles olhos de bola de gude, feito criança que aprontou demais e a gente não consegue ficar brabo diante de tanta fofura. No fundo uma artimanha – e das boas, mas não temos defesas. Seria bom se pudéssemos ensinar pequenas coisas pra eles, não para os aproximar dos nossos maus hábitos, mas poxa, (acho que) somos humanos e também gostamos de um agrado. Seria ótimo se um cachorro entrasse no seu quarto levando uma bandeja com o café da manhã, em vez de apenas pular no seu rosto às sete horas e interromper o resto do sono. Sonhemos.
Enquanto aprendiz de cronista busco assunto, recurso narrativo (é uma desculpa nobre pra eu ler seletas de crônicas), engatinho criando mínimas formas próprias de redigir, ciente das minhas pretensões. E no meio disso há cachorros. Talvez estivessem me olhando há tempos, e eu, animal pouco esperto, não percebi que eles queriam passear nas minhas frágeis palavras. Olhar e mexer com cães não é minha única paranoia, para o bem deles, mas talvez seja a mais visível. Talvez me achem um bicho amistoso desses que não mordem nem roubam comida, daí chegam perto. Se isso persistir e daqui meses seres humanos me perguntarem se isso faz parte da minha (tentativa de) voz autoral, farei igual cachorro: fingirei que não é comigo e apontarei o focinho pra outro canto. Pense comigo um momento: au-to-ral. Escrita nem tanto, mas a fala entrega que tem dois latidos em uma palavra, latidos subliminares em nossa grafia. Devemos aprender a latir.