Lavoura arcaica, um tema eterno

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Lavoura arcaica, um tema eterno

O tema familiar e suas obsessões é retomado em Lavoura Arcaica, bem como suas implicações

Tendo como pano de fundo a família patriarcal, o autor nos convida a examinar os mecanismos da individuação, a dificuldade de direcionar a libido de forma socialmente aceitável e a procura por um lugar no mundo – que o protagonista André  reivindica como “um lugar à mesa da família”, embora crescer signifique justamente o oposto: separar-se da família de origem e trilhar o próprio caminho.

Temos em Lavoura Arcaica um protagonista jovem, André, que se defronta com pulsões poderosas normais nessa etapa da vida: o desejo de independência e o desejo sexual.

Para assenhorar-se da própria vida, de seu próprio corpo, André precisa, como todo jovem, sair da infância com um ego forte e estruturado, o que não aconteceu. O texto nos fornece as pistas de como, onde e de que maneira seu desenvolvimento psicológico foi truncado, prendendo-o em um padrão comportamental desviado.

Este livro magistral é narrado em primeira pessoa, levantando as suspeitas do leitor experiente, já que o discurso desse tipo de narrador é tendencioso. O discurso do narrador personagem pode ser, e frequentemente o é, parcial, omisso, distorcido e, nesse caso em particular, projetivo.

O recurso da narrativa em primeira pessoa foi utilizado com maestria por Poe, cujos personagens psicopatas distorcem elegantemente a realidade, mentindo para si mesmos ou para o mundo. Exemplo típico é o conto O gato preto, em que o narrador protagonista afirma ter assassinado a esposa por acidente e, a seguir, sem nenhuma demonstração de dor, assume como natural procurar um local para esconder o cadáver!

Outras obras primas em que o recurso do personagem-narrador nos revela mais por suas omissões do que por seu conteúdo explícito são Lolita, de Nabokov, O apanhador no campo de centeio, de Salinger e Dom Casmurro, de Machado de Assis. Nas três histórias, o discurso inicialmente nos cativa, logo, porém, o bom senso nos alerta que algo não se sustenta na história; esse algo é omitido pela mente doentia do  narrador, incapaz de perceber as alterações de seus padrões morais, emocionais ou lógicos, discordantes daqueles aceitos pela sociedade em que vive.

André nos informa que fugiu de casa, mas, estranhamente, deixa pistas que lhe permitem ser facilmente localizado e reconduzido ao seio da família. De  saída ele nos informa que “nos intervalos da angústia colhe a rosa branca do desespero”, cita os sermões do pai “se os olhos não são limpos é porque revelam um corpo tenebroso”, e confessa “eu sabia que meus olhos eram dois caroços repulsivos.” Tal começo nos leva a acreditar que o moço cometeu algum crime e que espera ser punido, e que aguarda mesmo ansiosamente por seu castigo.

Dostoiévski e Poe exploraram em suas histórias essas almas conturbadas que buscam expiação. A frase clichê “o criminoso sempre volta ao local do crime” é um comportamento conhecido da Psicologia Criminal.

O jovem André  permanece, pois, em um quarto de pensão perto de sua casa, quase como se colocando um cartaz à porta: “Venham buscar-me”.

Suas acusações contra o pai são fortes, e aí a psicologia nos adverte: sentimentos expressos com exagero denotam projeção. Exemplifico:  a criança que deseja tornar-se independente e acusa os pais de toda sorte de maldades, como vemos nos contos de fadas, nos quais a madrasta não só não gosta de sua enteadas mas a faz trabalhar como criada, a humilha com palavras e atos, e até, no caso de Branca de Neve, paga ao caçador para que lhe arranque o fígado, para devorá-lo. Tal exagero nos alerta: não é a madrasta a mãe má, que odeia a criança, mas sim a criança que precisa acreditar que está sendo expulsa de casa a fim de criar coragem de aventurar-se no mundo.

Assim age André. Ele fala incessantemente e com paixão sobre o discurso do pai, apresentado como autoritário e castrador. No entanto, essa visão não resiste a uma análise mais cuidadosa. Quem é esse pai, que tanto incomoda? Um homem cruel, que bate no filho, que espanca a esposa? Um tirano que exige comportamentos contrários à índole dos filhos, como um casamento arranjado, a imposição de uma determinada profissão? Alguém que frustra uma vocação, que  humilha uma tendência? Um homem de comportamento ilegal, criminoso, constrangedor, um viciado em álcool, jogo ou drogas, destruindo o patrimônio da família e a tranquilidade do lar? Nada disso. Esse pai, que chama constantemente o filho ao diálogo, como abusa ele de sua autoridade?

Essa autoridade nos é apresentada por André na forma de discursos tradicionais pautados na valorização do trabalho e da família. Estes podem ser compreensivelmente chatos, anacrônicos, porém dificilmente prejudiciais. Esse pai parece ser mais um chato a ser ignorado do que realmente um agressor a ser temido.

Na fala de André, está embutido um outro discurso, o dele mesmo, o discurso do indivíduo passivo, servil, fraco, incapaz de enfrentar o antagonista e afirmar-se perante ele.

Vejamos como lidam com a mesma questão os irmãos de André. Como se trata da história de um rapaz, deixarei de lado a reação das meninas, cujo desenvolvimento psicológico segue características específicas.

O menino, antes apegado à mãe, deve dela afastar-se para mirar-se no pai, a quem toma como modelo. Todos fazemos isso, observamos nossos pais e nos apropriamos de algumas características deles que nos parecem mais adequadas do que outras. No entanto, ao crescer, o menino precisa rivalizar com o pai pelo amor da mãe, e a seguir, mais uma vez afastar-se dessa mãe, direcionando seu olhar amoroso para outras mulheres, pois, nesse campo, o afetivo, ele não pode competir com o pai. Ora, aí nosso personagem estacionou, e logo entenderemos as pistas que o texto nos revela.

Espera-se do menino que se identifique com o pai, que o desafie, que se rebele, que se afirme como diferente e mais poderoso do que ele – é o rito de passagem da adolescência. Se o filho não sobrepujar o pai em algum sentido, viverá sentindo-se um ser inferior, incapaz, motivo pelo qual filhos de profissionais excelentes escolhem com frequência outro campo de atuação profissional, que lhes permita destacar-se por seu próprio valor e não ser apenas o herdeiro de um negócio, o sucessor sem mérito. Passada a fase de afirmação social, o filho volta ao lar, tratando com carinho o pai agora visto como “o velho”, cujo tempo já ficou para trás. E o pai, com orgulho, não reclama, antes fica feliz de ver o filho alçar voo e superá-lo em sucesso financeiro, social ou outro.

Voltemos ao caso de André e seus irmãos.

Pedro, o mais velho, está na posição confortável de primogênito e reivindicar para si o papel de sucessor do pai é uma opção segura. Imitar o pai lhe garante aprovação, o respeito dos irmãos e o mantém longe de desentendimentos. Pedro, como representante do pai, estende a mão ao irmão desgarrado sem nenhuma agressão física, nenhuma ameaça, mantendo o discurso amoroso de união da família. Discurso insistente, chato, possível de ser rejeitado, o que André não faz.

O irmão mais novo, Lula, ressentido com uma rotina que não lhe interessa, pretende fugir tão logo amadureça, desejava espelhar-se no irmão André e, quando esse regressa à casa, o repreende e o chama de covarde. A posição de irmão caçula, principalmente em famílias numerosas, é amiúde descrita em contos e compêndios de psicologia: ao longo dos anos, o caçula aprimora e fortalece a personalidade  ao sofrer toda sorte de discriminações por parte dos mais velhos – chacotas, humilhações e reprimendas. Como ninguém o leva muito a sério, ele se aproveita dessa falta de atenção para ocultar sua rebeldia, estudar as falhas dos irmãos e aprender com os erros deles.

A crítica amarga e passiva de André se estende por muitos capítulos, antes que ele nos revele seu crime. Somente ao final André enfrenta o pai, após grande insistência do mesmo, com frases disparatadas, carecendo de clareza,  em um diálogo fascinante, elaborado com inteligência, demonstrando quão distantes entre si estão os mundos interiores do pai e do filho. A fala de André é enigmática, é a explicação que nada esclarece.

Cito esse pequeno trecho:

O pai – Para que as pessoas se entendam, é preciso que ponham em ordem suas ideias. Palavra com palavra, filho.

André – Toda ordem é uma semente de desordem; a clareza, semente de obscuridade.

Ora, o leitor a essa altura já sabe do incesto e percebe a estratégia de André, seu objetivo oculto que é esconder do pai o ocorrido.

Abro aqui um parêntese: como se trata de uma narrativa em primeira pessoa, e portanto suspeita, é de pouca relevância saber quem seduziu quem, e se o ato foi espontâneo, premeditado ou forçado. Mais importante do que esses detalhes, que nos desviariam para julgamentos, é notar que no ato mesmo de entrega ao amor incestuoso, André deturpa o discurso do pai, e de modo doentio e inconsciente segue as diretrizes desse discurso, “pois é no seio da família que se manifesta o verdadeiro afeto”. Há um capítulo em que Ana, calada, chora, enquanto André a incita a assumir o relacionamento, defendendo a busca do amor entre os dois com base, justamente, nos argumentos do discurso paterno!

André descreve poeticamente seus devaneios eróticos, suas primeiras experiências, ocultas, com animais, sua iniciação com prostitutas, sua atração pela irmã ao dançar. Nosso adolescente luta com uma libido intensa, livre e mal direcionada. Aqui nos perguntamos como esse pai tão severo deixava seus filhos tão soltos, tão sem vigilância, permitindo que vagassem livres por onde e por quanto tempo quisessem, perdidos em devaneios, mergulhados em fantasias, encontrando oportunidade para que atividades sexuais de todo tipo ocorressem?

Temos relatos de pais verdadeiramente austeros que até acorrentavam seus filhos, não lhes permitindo afastar-se, literalmente, de suas vistas, obcecados pela ideia da desobediência.

André é doce, meigo, frágil, seu pensamento é pura poesia. Compreende-se sua dificuldade em identificar-se com algum aspecto desse pai prático, firme, seguro de si. O texto nos fornece ainda outra informação: o apego desse filho amoroso a sua mãe, sua fixação em lembrar-se dos anos em que ela reservava para ele momentos de ternura, exclusivos, acompanhando-o até a vila, onde o menino frequentava a igreja como congregado mariano. Ela o acordava cedo, o abraçava e beijava, dizendo: “cuidado para não acordar seus irmãos, coração.” Nessa cumplicidade o menino se embriagava com o carinho materno, do qual não conseguiu se afastar, fixado na afeição dessa mãe amorosa, cuja lembrança é suficiente, ele o confessa, para “a qualquer momento explodir de choro.”

A essa mãe ele se refere usando uma expressão peculiar: “estar deitado na palha do teu ventre,” como se ele desejasse ainda essa fusão total e absoluta que liga a mãe a seu feto; confessa assim seu desejo de regredir ao estágio de total dependência da mãe, ao invés de crescer e buscar para si outro afeto feminino, outra fusão, mais adulta e adequada.

Assim, como a mãe é claramente proibida, fica a questão: seria seu desejo por Ana um deslocamento de seu desejo pela mãe? Seria esse incesto fraterno a concretização de outro desejo edipiano? Fala a favor dessa ideia o comportamento, repetidamente descrito, de afundar os pés na terra úmida e cobrir o corpo com folhas – simulando um útero, a própria terra úmida sendo uma metáfora conhecida da mãe.

A técnica narrativa de Raduan Nassar nos introduz no universo de contradições desse adolescente sofredor, que contrapõe à objetividade do pai, sua poesia; à firmeza paterna, sua doçura; à voz de comando, sua submissão aos cuidados femininos;  às certezas do pai, suas perplexidades, suas tentativas desastradas de descobrir-se como indivíduo e situar-se no mundo adulto.

Esse filho rebelde termina o livro “em memória de meu pai”, enfatizando um traço de fatalidade tão ao gosto árabe: “não questionando jamais o tempo sobre seus desígnios insondáveis”.

Ora, seria esse submeter-se ao destino um recurso psicológico para vitimizar-se e escapar da responsabilidade de suas escolhas?

O tema, o incesto, é árduo, pois incomoda.

Sófocles o abordou até as últimas consequências, usando o artifício protetor do mito de Édipo, em que os envolvidos ignoravam sua consanguinidade.

Recurso semelhante utilizou Eça de Queiroz em Os maias, pois ao se envolverem, Maria Eduarda e Pedro não sabiam serem irmãos.

Raduan Nassar é ousado. Sua história eclode no cotidiano. Suas personagens sabem exatamente quem são e o que fazem; suas ações atraem a desgraça na cena final em que o pai, em desespero, ataca a filha, ficando a critério da imaginação do leitor decidir como o restante da família lidou com isso.

Mais do que o tema encantou-me o estilo. A prosa é fluida, solta, com parágrafos longos e metáforas encantadoras.

Leitura imperdível.

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