Publicado pela Companhia das Letras, Sombras na Place des Vosges, de Simenon, é uma boa pedida de leitura para todos os públicos, desde os amantes da literatura policial aos mais exigentes leitores
Whodunit (Who has done it?) é o termo em inglês normalmente para definir a narrativa detetivesca. Há um crime, no mais das vezes um assassinato, um detetive, que tenta desvendá-lo e um culpado. Com esse triângulo, que pode remontar à peça Édipo Rei, de Sófocles, todas as narrativas do gênero giram por páginas e mais páginas. Temos nomes que se destacam no gênero, mesmo seguindo este modelo básico: Edgar Allan Poe, Agatha Christie e Conan Doyle entre os mais antigos; Umberto Eco, Manuel Vázquez Montalbán e James Ellroy entre os mais contemporâneos. As formas de se construir uma narrativa detetivesca é variada, como Em nome da rosa e a vasta gama de obras pós-modernas demonstra. Então, entre tantos textos do gênero, qual escolher? Qual autor?
Sinceramente, falo mais como fã do que como crítico. Georges Simenon tem um diferencial dos outros autores citados (e os que poderiam ter sido) em algo que é o fraco do gênero: a visão psicológica. Seu famoso comissário Maigret, comissário do Palácio da Justiça em Paris, ao investigar um assassinato, um roubo, uma ocorrência, recria o mundo da vítima, conhecendo seus contatos, suas trapaças, suas incoerências. No galgar da investigação, temos a impressão de que o personagem principal, já falecida, ainda se mantém viva apesar da morte. Ao ouvir mulheres e maridos, irmãs e irmãos, pais e parentes próximas, filhos e filhas, agiotas e devedores, compreendemos a complexidade do cotidiano de cada indivíduo. Há construção psicológica deste, bem como a dos que o cercam, apresenta um painel complexo no qual qualquer leitor pode reconhecer-se.
E onde entra Sombras na Place des Vosges?
Raymond Couchet, dono de um grande laboratório de soros, é assassinado em seu escritório na Place des Vosges, em Paris, um dos maiores e mais conhecidos pontos históricos da cidade luz, tendo também roubada uma quantia de 360 mil francos. No prédio ao lado do crime, mora sua ex-esposa, Juliette Martin, e seu marido, Edgar Martin. No Hôtel Pigalle vivem Nine, sua amante, e Roger, seu filho do primeiro casamento com Juliette. Há ainda sua atual esposa, Germaine. Com esse conjunto simples de personagens, Simenon, usando do seu comissário Maigret, desvenda a vida de Raymond, suas relações com a primeira mulher e o filho, as tensões dos moradores do prédio ao lado, as questões dele próprio, um homem de origem humilde que acaba ganhando dinheiro e despertando a inveja (dos já pobres) e o desprezo (dos já ricos). Conforme lemos, temos a sensação de que Maigret não busca o assassino e o ladrão (se é que ambos são a mesma pessoa), porém tenta entender essa rede complexa de relações mantidas por todos os personagens, convergindo para o assassinado. A revelação do ódio da sua primeira mulher, e da simplicidade do seu atual marido, demonstra-nos o quão desprezível pode ser a pequena-burguesia, desejosa de ordem e de dinheiro. A vida boêmia de Roger, filho de Raymond, também aponta para uma situação mais complexa de que um simples caso de jovem preguiçoso cujo sustento é pedir dinheiro ao pai, agora rico. Nine, a amante honesta, completa esse quadro de uma pessoa que, apesar da situação extraconjugal, que talvez pudesse levá-la, no clichê máximo, a apenas querer o dinheiro de Raymond, nos apresenta um fato inusitado: o amor sincero.
É nesse jogo de sombras chinesas (o título original é L’ombre chinoise) que se dá a real ação do romance. Ao término, quando ao chegarmos ao quem e por que do crime, apesar de surpreendidos (afinal lemos uma narrativa detetivesca), somos assolados por algo mais perverso, mais profundo e mais assustador. Como em tantas das suas obras, mas em especial nessa do início da sua carreira, Simenon diz que o mostro do crime e da ganância está dentro de cada um de nós (remetendo ao velho complexo de Raskolnikov), e que a inveja vive emaranhada em nossa psique, mesmo que a negamos.
Sombras na Place des Vosges serve tanto para os amantes da literatura policial quanto àqueles que demandam profundidade psicológica e filosófica que os grandes clássicos podem ter. Uma leitura que se ressignifica e demanda seu lugar entre as grandes obras do gênero e da literatura.