Cortou as cortinas. Estava mais pálido, pois o sol adentrou a sala que, sem móveis, dava uma sensação de algo vago, apesar de ser pequena e acomodar apenas uma mesa de vime e uma cadeira de bambu, estilo qualquer utilidade. No chão, um rádio toca-fitas, meio portátil, que servia para amainar a vida nos momentos de ócio e solidão. Um blues de John Lee Hooker, dissipando a monotonia, acompanhado com pequenos tragos de um Whisky escocês. Retalhos cor de vinho espalhados pelo chão de taco opaco junto com algumas fitas do B.B. King, The Doors e Bob Dylan. Rebeca era a única lembrança que assaltava a cabeça dele, quando, de vez em quando, resolvia fuçar nalguns pontos do passado, que se mantinham intactos, apesar de tudo estar muito longe no tempo. Som de veludo, uma voz pausada, quase uma conversa e a harmonia em compasso do blues servindo como ornamento sonoplasta da cena cotidiana. Troca a fita, ouve um pouco da voz grave de Jim Morrison. Pensa: people are strange, e joga a camisa em cor verde musgo no encosto da cadeira e tenta rabiscar alguns versos numa folha de papel de pão que guardou do dia anterior. Escrita a lápis, letra trêmula que seguia sinuosa pela folha por cima da prancheta. Pensava em algo diferente para escrever, algo sobre coisas que não conseguia entender, mas que roubavam sua atenção de vez em quando. Dificilmente falaria de amor, de paz, de felicidade. Não que fosse avesso a tais temas, mas preferia pensar mais acerca da existência e os motivos que regem o comportamento das pessoas. Um existencialista pós-moderno. Um lobisomem juvenil que metamorfoseava sua vida através de alguns versos sem estribilho. Parafraseava Rimbaud e Emily Dickinson quando se cansava de tentar fazer algo inovador.
O céu lá fora estava claro com algumas nuvens. Um vento leve passeava pela sala e batia nas venezianas recém-instaladas. Ernesto desiste do poema. Escancara a cara para a rua, fim de tarde, o sol se pondo. Horizonte em tom vermelho escarlate encostando-se às montanhas ao longe. O ar perfumado de alfazemas enchia-lhe os pulmões: saudade.
Rebeca era a musa, era a causa, era a angústia, era a solidão, era o amor impossível. Resolve dar um passeio pela noite. A velha jaqueta jeans aquecendo o corpo cansado, não de trabalho, mas de fazer-se tão doído pela caminhada. Para numa banca e come um cachorro quente. Não diz nada, apenas tira umas moedas do bolso, paga e segue adiante. Era de poucos amigos, mas gostava de se fazer visitado por lembranças de momentos importantes. Era leal como cão vira-lata. Da amizade colheu boas razões para não entender, mas continuar a caminhada sem remorsos pela existência pífia. Laços de bem querer regados a abraços ternos e goles secos, e conversas demoradas. Ela era uma dessas amizades. Primeiro, ao acaso, depois por uma quase necessidade de conviver juntos. Só depois veio o amor. Nisso acredita: o amor é uma sementinha que, se regado a pequenos gestos de amizade, brota e se transforma em árvore frondosa. Ela tinha uma beleza descompromissada com a opinião alheia. Era diferente porque era simples e natural, coisa que a maioria das mulheres não era com suas poses e maquiagens. Ernesto sorriso bobo.
Assim ele sorria: o som dos pássaros e a saudade. Mas o sorriso sempre o conduzia às lagrimas disfarçadas em cisco nos olhos. Levantava os óculos e enxugava com as costas das mãos. Era homem livre, ela também, ambos cultivavam uma devoção à liberdade. Mas sempre se terminavam num abraço demorado quando não aguentavam mais a distância. E beijos quentes, e entregas em cumplicidade faziam o tempo sumir.
No fim de fevereiro de um ano que não lembra mais, ela mudou-se para outro lugar. Acompanhou a família e deixou seu coração partido. Ela sempre liga, pois parece sentir mais que Ernesto da distância: ela chora, ele também.
Ernesto volta para casa. As chinelas batendo nas solas dos pés e pergunta em silêncio: quem quer comprar um pouco de solidão, de saudade?
Na sala vazia, a última canção “The End” do Doors finalizando, em tom menor, mais um dia em desalento de um poeta-amor-mexerica: que se descasca e enche os olhos de ardor e lágrimas.
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Ilustração exclusiva para o conto por Ellen Kiechle.