A função e o destino da literatura na interpretação de Lima Barreto, em análise da obra O Destino da Literatura. Obra que nasceu de uma conferência (às avessas), ela nos mostra outra face do autor.
Em 1921, o escritor Afonso Henriques de Lima Barreto ainda dá mostras da saúde precária que o levou à sua segunda internação em hospital psiquiátrico na passagem de 1919 para 1920. Tal motivo inspira o amigo médico Ranulfo Hora Prata a convidá-lo para se desintoxicar e “relaxar os nervos” na cidade de Mirassol, no interior paulista.
Lima, pouco dado a viagens, vê com bons olhos a novidade e se prepara a ela como para um grande acontecimento, apesar de não ser uma viagem a se considerar longa. O fato é que talvez não o fosse a quem – com dinheiro nas algibeiras – estivesse habituado a flanar pelo mundo como a maior parte dos modernistas de São Paulo. Não era o caso do nosso escritor carioca: pobre, negro, anarquista e suburbano. A proximidade do passeio poderia até afetar seu equilíbrio emocional já combalido pelo alcoolismo e pelas preocupações familiares (vale ressaltar que Afonso Henriques era arrimo de família e tinha em casa um pai com transtornos psíquicos). Mas a partida, o trajeto e a instalação foram muito bem planejados, tudo visando ao pleno restabelecimento do escritor.
A permanência em Mirassol transcorre bem, até que surge a ideia de se convidar Lima Barreto a proferir uma conferência literária. Ele não era afeito a discursos. Apesar de se expressar forte e fluentemente por escrito, tanto em textos ficcionais quanto em ensaios, crônicas e dissertações sobre os mais diversos temas, era tímido demais para falar em público.
O artista, tão bem recepcionado na cidade, provavelmente se sente impelido a retribuir de alguma forma a hospitalidade. Nesse sentido, deve ter considerado sua obrigação aceitar o convite para discursar, pois uma recusa poderia soar como desfeita. Dessa forma, prepara cuidadosamente por escrito a conferência, pensando assim diminuir o nervosismo da proximidade do evento. Lamentavelmente, a ansiedade crescente faz com que Lima se refugie na bebida. No horário da palestra é encontrado largado na sarjeta após ter se embriagado, durante toda a noite anterior, até cair inconsciente.
A conferência, que não chegou a ser apresentada, recebe o título O Destino da Literatura e vem a figurar na revista Souza Cruz nos números 58 e 59, publicados nos meses de outubro e novembro de 1921 (cerca de um ano antes da morte do escritor). Nas obras completas de Lima Barreto organizadas por Francisco de Assis Barbosa em 1956, o texto aparece no volume – prefaciado por M. Cavalcanti Proença – intitulado Impressões de Leitura, publicado pela Ed. Brasiliense. Hoje o escrito pode também ser encontrado no livro Um Longo Sonho do Futuro: Diários, Cartas, Entrevistas e Confissões Dispersas, da Graphia Editorial, bem como noutras coletâneas.
Conferências literárias e o destino da literatura
Em O Destino da Literatura, Lima Barreto começa discorrendo sobre as badaladas conferências literárias, um gênero de evento bastante popular na época. Com habilidosos toques de humor, trata-se da beleza física dos literatos dedicados a esse tipo de palestra, que acaba atraindo admiradoras mais interessadas em outros aspectos, que não os temas artísticos ali abordados. Desculpando-se de seu desprovimento desses atributos de interesse, Lima adentra no assunto de qual seria a função da literatura.
Discorda logo de início daqueles que entendem que a beleza plástica (de inspiração pretensamente grega) é o objetivo da arte. E o que seria propriamente a beleza, afinal? Lima entende que o belo na arte – mais especificamente na literatura – não se resume à pura harmonia das formas, à perfeição exterior das composições literárias. Filiando-se a concepções estéticas do escritor Liev Tolstoi (1828-1910) e, principalmente, do crítico literário Hippolyte Taine (1828-1893), ele entende que a beleza é a manifestação (por meio de elementos literários) do caráter essencial de uma ideia, mais completamente do que ela se apresenta nos fatos reais.
Dá exemplo do romance Crime e Castigo do russo Fiódor M. Dostoiévski (1821-1881). Nessa obra o personagem Raskólnikov se vê tentado a assassinar uma velha usurária, que não faria falta alguma no mundo, exploradora que era dos miseráveis que se sentiam obrigados a penhorar seus bens para ela em troca de empréstimos a juros claramente extorsivos. O livro é ambientado em quartos infectos, ruelas sombrias, tascas sórdidas, tudo sempre envolto em miséria e devassidão. Onde estaria a beleza desse magistral romance, considerado clássico da literatura? Ora, justamente na tese levantada por ele – a ideia de que o homicídio não pode ser justificado por critérios lógicos ou utilitaristas.
Nas questões éticas levantadas pelo romance, reside sua beleza, que consiste nas reflexões que ele suscita em nosso espírito. Reflexões essas que só se efetivam realmente a partir da elaboração competente da narrativa por meio dos recursos artísticos de que se vale o escritor. A beleza não está na técnica em si, mas na sua utilização criativa em prol duma tese ou de um questionamento sobre a sociedade, a vida ou qualquer aspecto do universo. Assim, por paradoxal que possa parecer, através da leitura de textos ficcionais temos a possibilidade de alargar nosso entendimento sobre fenômenos reais que nos cercam.
A arte literária nos permite um entendimento mútuo, uma comunhão de pensamentos diversos, através do compartilhamento de experiências, possível pela imersão do leitor na visão de mundo de personagens múltiplos. Não estaria nisso, verdadeiramente, o destino e a beleza da literatura?