Luigi Ricciardi brinca com os limites da ficção em Criador e Criatura
Em seu terceiro livro, Criador e Criatura (2015), lançado na 2ª Festa Literária de Maringá (FLIM), Luigi Ricciardi desafia os limites da ficção ao colocar o escritor e seus personagens frente a frente. Além de adentrar em universos repletos de embates de cunho existenciais, sociais e até metafísicos.
O livro possui dezessete contos nos quais, de modo geral, o autor coloca o escritor como aquele que brinca de ser Deus, sempre pensando nos limites da realidade, daquilo que é real ou não. Luigi Ricciardi vai, nestes contos, da tragédia à comédia, da crítica social aos questionamentos existencialistas, das memórias aos sonhos e à morte. Duas questões chamam muita a atenção nesse livro, são fortes e bem marcadas, as quais serão comentadas separadamente e detalhadamente abaixo.
A primeira, conforme já mencionado, é esse embate entre criador e criatura, isto é, escritor e suas personagens, os limites daquilo que se diz ficção e do que se diz realidade. E também da dependência do escritor em relação a literatura, pois uma vez mergulhado, de fato, em suas águas, ele precisa dela para sobreviver.
Em “Criador e criatura”, o conto que dá nome ao livro, há um escritor (criatura) que demonstra o fato de que, de certo modo, é um deus, pois dá vida as suas criaturas (personagens) e (tenta) modela(r) seus destinos, seus comportamentos, seus pensamentos e suas ações. No entanto, uma hora o criador perde o controle da situação, torna-se dependente da criatura, e esta toma vida, toma a frente da história. Os limites entre a ficção e a realidade perpassam todo o conto. E ficam algumas perguntas martelando em nossa mente. Em que medida as criaturas são apenas criadas? Em que medida elas são personagens-verdade em nossa vida? O escritor brinca de deus, mas também está submetido as suas criações? O escritor é, então, criador e criatura ao mesmo tempo?
No conto “Eu, literatura”, por meio de questionamentos acerca da morte e de nosso possível destino depois dela, o narrador-personagem menciona que escrever é uma forma de ser eterno, pois mesmo que o escritor parta dessa para uma melhor ou pior, suas obras permanecerão em algumas estantes durante décadas, a espera de um leitor. É destacado que a ficção é uma forma de viver, é uma forma de tornar a vida uma coisa possível, “aguentável”, pois por meio dela é possível inventarmos amores, preferências, razões, crenças e filosofias, desviando-nos, assim, do choque com o real. De acordo com o personagem, a vida na qual tentamos ser personagens inventados por nós mesmos e, por isso, somos todos literatura ao criarmos nossa vida de acordo com nossas preferências.
A segunda questão é a inquietação do autor, mostrada pelas vozes dos narradores dos contos, em relação a nossa passagem pela vida: será que vivemos apenas para cumprirmos nossas obrigações, objetivos profissionais e não vivemos realmente para aproveitarmos a vida, aproveitar cada minuto?
Percebemos, nesta obra, um atento olhar sobre a condição do outro, sobretudo no conto “Os mortos de Treeway Town”, no qual cada parágrafo narra uma história de vida distinta, de pessoas que, de modo geral, batalham por uma vida minimamente digna, mas que passam por humilhações, desconfortos, solidão, tristeza e até mesmo raiva.
No conto “Eu desejava secretamente Gisella Andrade”, para além da questão do desejo sexual (carnal, se o leitor preferir um termo mais conservador), temos um narrador preocupadíssimo com a questão trabalhista e com o comodismo humano. A história é iniciada com o narrador dizendo que a vida é besta, em seguida menciona:
“É engraçado, o povo trabalha seis dias por semana e, quando lhes dão um dia verdadeiramente pra eles, para que eles façam realmente algo interessante pra vida deles, todo mundo resolve descansar, pra ficar bem disposto pra semana que vai começar. Resumindo, todos os dias são do trabalho: seis para estar lá e outro para recuperar as energias pra aguentar os seis outros dias que virão. Aí a gente vai ficando cada vez mais em casa, aí eles lançam tevê não sei quantas polegadas, cabo hdmi, transmissão digital, não sei quantos canais pagos e tantas outras coisas pra gente se distrair em casa. Então, ao invés de sair e comer com os amigos, o povo inventa a comida congelada ou um monte de bibelôs pra gente enfeitar a sala pra ficar bonitinha durante nosso descanso. Dá vontade de explodir tudo isso. Todas essas coisas são bonitas, mas não são necessárias pra viver. A gente, no fundo, é refém do comércio e do trabalho. Fico me perguntando aonde foi parar a revolução trabalhista. Será que ninguém percebe que a gente não vive, que a gente sequer vegeta? (p.79)”
Como expresso no conto, há questionamentos do narrador-personagem que se mostra inquieto e, ao mesmo tempo, impotente diante as questões relativas ao trabalho, ao aproveitamento dos dias e à cegueira do ser humano que vive como refém do trabalho e do comércio, mantendo sempre a mesma rotina, agindo sempre mecanicamente, com ações e pensamentos já premeditados. Precisamos mesmo trabalhar tanto? Somos felizes e aproveitamos a vida trabalhando tanto? Os aparatos eletrônicos e tecnológicos nos fazem mais felizes ou mais comodistas?
E assim se resume a mais nova obra literária de Luigi Ricciardi: os limites da ficção são questionados, são colocados na mesa levando ao leitor a refletir sobre a questão da realidade ser tão frágil, tão cheia de ficção; além de, por meio da arte da palavra, questionar o porquê de vivermos tão reféns e escravos do trabalho, da rotina, dos eletrodomésticos, eletrônicos e demais bugigangas que a sociedade e a mídia tenta nos enfiar goela abaixo.