Num mundo cujas mídias sociais servem de entretenimento barato e onde os comportamentos são previstos por algoritmos, a que está relegada a literatura?
Pequena introdução à lógica do sistema
Os sistemas políticos e econômicos têm sua maneira de tratar a arte, especialmente a literatura: ou a colocam sob suas asas e ditam qual é a estética dominante, ou a silenciam até a invisibilidade.
Há uma maneira ainda mais eficiente: quando uma obra literária é vista como ‘ruído’ para o poder estabelecido, o sistema a engole e em seguida a distribui, categorizando-a nas vitrines, nas listas dos ‘mais vendidos’, taxando-a com o valor monetário, embelezando-a com marketing e propaganda, aceitando-a como ‘parte’ do sistema.
Quanto à invisibilidade, muitas obras literárias se enterram nas bibliotecas. E temos exemplos concretos disso: toda uma sorte de autores negros e mulheres caíram no esquecimento da história da literatura, pois estavam deslocados do centro.
Seleção
Isso mostra que as ‘verdades’ de uma época selecionam os autores a serem lidos e distribuídos, fazendo com que alguns caiam no anonimato: os meios de distribuição das obras literárias estão hoje em poder da classe dominante. É obvio que os interesses dessa classe – reduzidos ao financeiro e ao lucro – acabarão por se sobrepor ao conteúdo mesmo dos livros produzidos.
Se a literatura era, até o começo da segunda metade do séc. XX, o principal elemento organizador das trocas simbólicas, o principal meio de expressão do homem, o centro de irradiação e captação da experiência humana, hoje ela não ocupa sequer a periferia.
Tantas são as mídias de entretenimento que a literatura, com seu ritmo lento e profundo, árduo e contra-sistêmico, acabou por ser relegada a um segundo plano, servindo apenas a um grupo fiel, uma espécie de ‘seita’, por sua vez também composta por uma minoria quase invisível. No máximo, a literatura é consumida como se consome um objeto, reduzida a apenas duas de suas inúmeras funções: diversão e escapismo.
Ainda mais na época da felicidade, onde se comemora aquilo que Kundera chamou de “a festa da insignificância“, época que nos obriga ao sentimento fácil, à emoção superficial, às experiências catalogadas, ao bem estar e à aceitação do mundo, tudo isso de forma fluida, não sólida, ‘líquida‘, como diria Bauman. Que lugar a literatura iria ocupar nesse espaço?
A política do controle
Pensemos num sistema político de controle, um sistema perfeito, cujas arestas e falhas, ao invés de destruí-lo, mais o aperfeiçoam. Um sistema que, através de vários mecanismos que crescem a cada dia, apoiando-se na tecnologia e na ciência, consigam transformar os indivíduos em entes previstos e aceitáveis, ao ponto de que até mesmo o erro esteja dentro da margem esperada pela estatística…
Pois Adous Huxley, autor inglês várias vezes retratado nas matérias do Homo Literatus, descreveu esse mundo.
Mesmo que escrito numa época em que o stalinismo emitia seus sinais mais obscuros, o Admirável mundo novo de Huxley diz mais respeito à nossa época do que à época de Stalin.
Isso porque o sistema de Stalin, além do apelo à ‘construção das verdades’, era baseado na opressão, ao passo que o nosso sistema é totalmente baseado na vigilância, o que dialoga perfeitamente com o livro do autor britânico.
Que lugar ocuparia a literatura nesse espaço?
O mundo regrado de Huxley tem o dispositivo do ‘Soma’ para impedir qualquer infelicidade – podemos usar o ‘Soma’ como uma metáfora de vários “felicitantes” no nosso mundo atual.
Tudo o que gira em torno da infelicidade e do descontentamento com o mundo e consigo mesmo é simplesmente inexistente. O que muito se parece com o nosso mundo atual de Instagramers e Youtubers onde ninguém é (ao menos em aparência) infeliz.
Bernard Marx, uma mistura de Karl Marx e Bernard Shaw, por um erro do sistema conheceu a infelicidade e a dor por saber-se diferente dos demais. É o personagem mais profundo e ao mesmo tempo mais repelente do romance – um dos poucos que possui vida dentro de si.
Shakespeare num mundo de selvagens
Mas nossas pistas estão no mundo dos selvagens, o mundo periférico em relação ao mundo de controle.
Lá está o Selvagem com os seus quinze anos. Começa a aprender a ler, não sem certa resistência. E somente no momento em que seus amigos debocham dele, apega-se ao orgulho de ser o único que sabe decodificar os mistérios das palavras.
Então procura mais estímulos, pois os livros de química e de questões técnicas não o satisfazem, já que há neles muitas dores e sensações que ainda não encontraram nome e que não constam nos livros científicos.
Até que um dia encontra no chão um volume grosso, velho e comido por traças que o padrasto trouxera e que, segundo disse sua mãe, estava esquecido por ser de ‘assunto menor’, bobagens, coisa sem importância. Era nada mais nada menos do que as obras completas de William Shakespeare: ”e pareceu-me cheio de tolices. Não civilizado”.
A partir de então, ocorre uma transformação que terá seu ponto culminante na passagem ritualística à qual se submete.
No contato com Shakespeare, o Selvagem sente o estranhamento das palavras, sulcos são abertos no seu ser:
“As palavras estranhas rolavam em sua mente, reboavam como trovão, como os tambores nas danças de verão”.
Seu interior, antes obscuro e intuitivo, agora é iluminado pelas palavras que conseguem nomear sensações obscuras. É na mesma época que, odiando profundamente o amante da mãe, o nosso Selvagem tenta cometer um assassinato.
Como um personagem de Shakespeare, o gesto dramático da faca é ecoado pelos versos do bardo inglês:
“Como tambores, como os homens cantando para o trigo, as palavras repetiam e repetiam em sua cabeça […] eu o matarei, repetia sempre”.
Mais adiante vemos o Selvagem recitar um poema para o professor de Engenharia Emocional Adiantada, que ensina versificação na Propaganda Moral e Publicidade. O Selvagem cita A fênix e a pomba, trechos de Romeu e Julieta, e arranca do professor de engenharia emocional a mais pura incredulidade, ao mesmo tempo em que o comove, sem que ele saiba direito o motivo:
“ouviu com excitação crescente. Espantou-se com a ‘única árvore árabe’; ao ouvir ‘tu, mensageiro barulhento’ sorriu num contentamento repentino, após ‘todo pássaro de asa tirânica’ enrubesceu; mas com música ‘fúnebre’ ficou pálido e trêmulo de emoção sem precedentes”.
Sua conclusão sobre Shakespeare é que ele faz nosso melhores técnicos de propaganda parecerem absolutamente idiotas:
“[…] por que esse velho companheiro foi um técnico de propaganda tão maravilhoso? Porque tinha tantas coisas loucas e torturantes com que se excitar. É preciso estar-se ferido, transtornado; de outro modo não se pode considerar suas frases realmente boas, penetrantes como raios X.”
A ‘arte’ mentirosa da propaganda
A literatura caminha para a propaganda, atinge o público com a intenção de manter o status ideológico. É assim nos sistemas perfeitos de vigilância.
Numa sociedade que não conhece profundamente a dor, talvez Shakespeare já não faça mais sentido e fique relegado ao esquecimento, como no romance de Huxley.
No nosso mundo atual, aos poucos as emoções vão sendo controladas. Não apenas o corpo está sob o regime do controle como queria Foucault, também as emoções estão sendo pouco a pouco descritas, banhadas pelo facho de luz do sistema.
O controle que um Facebook exerce, por exemplo, é muito mais sobre nosso emocional. E o apelo para a felicidade constante não deixa de ser uma tentativa de apagamento da dor e da infelicidade, coisas inerentes ao humano.
Pergunto-me se Harold Bloom teria razão ao afirmar que será Shakespeare o autor encenado em Marte. Pelo andar da carruagem, o grande acontecimento da colonização de Marte, se vier, não contará com o poeta inglês, o qual talvez ganhe o destino do livro de Huxley.
Se hoje perdemos muito dos significados da obra de Shakespeare, que dirá daqui a algumas dezenas de anos, talvez séculos!
No mundo descrito por Huxley, não há espaço para a literatura, apenas para a engenharia emocional.
O autor tem acertado em cheio em suas previsões. A engenharia emocional hoje já opera a todo vapor e as emoções coletivas têm sido aos poucos controladas – ainda estamos em fase de teste.
Recentemente vazou a notícia de que o Facebook estava fazendo teste de controle emocional nos usuários através do feed de notícias. O que é isso senão o primeiro sintoma de engenharia emocional, os primeiros movimentos daqueles técnicos que estudarão nossas emoções (possivelmente pela engenharia e pela neurociência)?
Sobre a literatura que resiste
No entanto, a literatura ainda é existente e resistente. Ler um livro requer muito aprofundamento e um tempo maior. Grandes autores ainda figuram entre os lidos na nossa época.
Mas sua perda de posição mostra que a literatura não tem um trono vitalício. E, diante do fato de que livros de colorir foram os mais vendidos há alguns anos, quando no seu lançamento, ao passo que os grandes autores da chamada literatura universal se empoeiram nas bibliotecas, sendo lidos apenas por um grupo restrito de acadêmicos e estudantes universitários, não é difícil prever em que caminho a literatura vai parar.
Num mundo sem dor, os versos de Shakespeare são incompreensíveis.