Sobre o poder que a literatura tem de nos mostrar o pesado oculto de nossas consciências
Regularmente nos deparamos com obras que, quando terminadas, nos jogam em vazio existencial, nos fazendo questionar sobre nós, o que estamos fazendo, em que mundo estamos vivendo e para que tudo isso vai servir. Obras que dirigem duras críticas à sociedade, ao governo, ao sistema, a preconceitos, costumes, etc… Que por motivo ou outro nos lançam nessa espiral de incertezas, expressa por um olhar perdido para a parede branca do quarto. Uma noite de sono bem dormida, as notícias do jornal e a rotina acabam por nos retirar desse estado, que poderia ser muito mais fértil do que o permitimos ser.
O que acontece é que geralmente estas grandes obras datam de há, no mínimo, um século de nossa presente realidade. As questões humanas, claro, ainda têm a força de nos causar impacto; mas aquelas mais específicas de cada tempo, da sociedade daquele momento específico – político, social, de guerra ou qualquer outro fator que lhe dê peculiaridade – nos atingem em grau bem menor. Talvez seja por isso que o efeito catatônico destas obras acabe tendo certo prazo de validade. Falta-lhes algo que deixa em nós determinada marca que, com nosso cotidiano, se reacenda e não se esvaia.
A literatura contemporânea, é de se pensar, seria capaz de ter esse efeito colateral. Contudo, e de forma nenhuma esta é uma característica negativa, grande parte de nossas obras ainda carregam herança de nossa cara literatura clássica; ou seja, parte da retratação da realidade acaba poupada – não necessariamente valorizada – dentro da narrativa. Seja por excesso de crítica dirigida a um único setor ou aspecto, seja pela ausência completa de “um lado da moeda” da questão.
Mas há um braço da literatura contemporânea que nos oferece uma visão mais homogênea, por assim dizer: a injustamente ignorada literatura marginal – recentemente breve alvo dos holofotes com a morte de Ana Cristina Cesar, poeta representante da categoria. Entre inúmeros nomes em atividade atualmente – especialmente com participações em saraus, e pela intensa divulgação nas redes sociais –, Ferréz é o veterano que ajuda a abrir caminho para os jovens talentos. Ironicamente, sua segunda publicação é uma de suas produções mais impactante, e que deixa óbvio todo o propósito e potencial de uma literatura comprometida com nada nem ninguém além de si mesma.
Manual Prático do Ódio, de Ferréz, se passa na periferia da zonal sul de São Paulo no ano de 2002. Trata-se, basicamente, de uma crítica generalizada a nossa organização social e ao sistema econômico e governamental – “… o jeito certo de ganhar dinheiro era usar o método do Estado: repressão e dependência”[1]. Muito diferente do que se poderia esperar, não há vitimização, não há alívio nem ponderações sobre as atitudes de qualquer um dos personagens. Para toda e qualquer situação apresentada sobre as vidas das personagens, são mostrados os dois lados da situação: o sofrimento diário, consequência de uma sociedade cruel, e as atitudes tomadas para buscar resolver a situação, inteiramente de responsabilidade do personagem que age. Se há um dedo acusatório durante a trama, ele aponta para toda e qualquer consciência pesada – de leitores e personagens.
“Sabia que cada um amenizava a própria dor de alguma forma”[2].
O texto de Ferréz não tem qualquer preocupação em envolver o leitor em sua atmosfera para assim facilitar a transmissão de sua mensagem e de seus ideais. Trata-se de um texto que rende o leitor à sua atmosfera pesada e truncada, de vocabulário oscilante e descrições cruelmente realistas. É a não valorização de uma situação de sofrimento ou glória, é o retrato cru revelado sem filtros, em passagens breves que nos atingem a consciência cada vez de um ângulo.
[1] FERRÉZ. Manual Prático do Ódio. São Paulo: Editora Planeta, 2014. Cap. 4 (edição digital)
[2] FERRÉZ. Manual Prático do Ódio. São Paulo: Editora Planeta, 2014. Cap. 2 (edição digital)