Apenas coisas belas são literatura? Ernest Hemingway e Herman Melville são alguns dos muitos que poetizaram o grotesco, buscando as suas próprias coisas “belas” onde muitos torcem a cara
Ainda encontro muita gente que gosta de ler apenas histórias previsíveis com finais felizes mais simplórios do que as novelas da Rede Globo onde todos se casam e têm filhos. Nada contra, mas a literatura pode oferecer muito mais coisas do que isso. É claro que muitas vezes buscamos nos livros o que não temos na vida real. A arte, sem dúvida alguma, pode servir de escape para uma vida tediosa e sofrida, e as páginas da ficção podem funcionar como uma espécie de apaziguamento das próprias dores e frustrações.
Porém, achar que literatura deve falar apenas de coisas “belas” – conceito questionável –, bem como só procurar histórias que sigam o mesmo modelo é muito limitador. Certa vez, fui criticado por incluir palavrões nos meus textos e descrever uma cena de sexo não com poeticidade, mas usando adjetivos e imagens remetentes a ímpetos carnais. A pessoa que me criticou era inclusive da área da literatura, com o argumento de que a literatura deveria se dedicar a descrever apenas as coisas bonitas.
A questão surge então: a literatura é para falar apenas de coisas belas? Obviamente não. Ela fala do que é humano e, se assim o faz, é claro que não poderá se dedicar a falar apenas do que é belo, correto, justo e aceitável – conceitos que, inclusive, são muito mais tênues atualmente do que podem parecer.
Não dá nem pra dizer que tal pensamento seja anacrônico, uma vez que, desde que há literatura, há a presença do que se considera oposto ao belo – algo que repugne, amedronte ou choque. Segundo os existencialistas, a melhor arte para se falar de coisas assim seria a literatura, uma vez que ela retrata, mais profundamente que as outras, a condição humana.
É por isso que pode, e se deve, falar sobre política, sociedade, direitos, injustiças, mortes, guerra, traições, desejos, amores, contradições, dores, sofrimentos, raivas, frustrações, invejas, roubos, limitações, entre outros, pois tudo isso remete ao que é humano e não deve haver pureza ou pudor em relação a essas coisas.
A literatura tem, inclusive, o poder de fazer o oposto: descrever cenas ou coisas aparentemente grotescas e mesmo assim construir uma obra cheia de poesia ou de belas imagens. Pensei muito nisso quando entrei em contato com dois romances específicos – escritos por seus respectivos autores e lidos por mim em momentos completamente diferentes.
Ano passado, ganhei de presente um livro do Ernest Hemingway, justamente um dos quais eu não tinha interesse nenhum em ler: Verão Perigoso (1960). O
escritor estadunidense, já na velhice e consagrado por seus grandes feitos literários, é contratado pela revista Life para ir cobrir as touradas na Espanha. Não sou vegano, abolicionista ou um ativista defensor dos animais, mas sempre foi latente em mim uma raiva enorme em relação a rodeios, muito comuns na minha região, e a qualquer outro “esporte” ou tradição que maltrate animais.
De modo que não me interessei inicialmente pelo livro. Resolvi ler a obra primeiramente pela gentileza de meus amigos que me ofereceram o romance. Fui seduzido também pela nova e belíssima edição que a Bertrand Brasil fez com praticamente toda a obra do Hemingway – quem ainda não conhece, procure, pois está uma beleza: capa emborrachada e autógrafo do autor em auto-relevo.
Mas não tive ilusão em achar que o livro me faria gostar das touradas. Após a leitura, continuo não gostando, mas somente um grande escritor como o Hemingway para escrever páginas tão belas de algo que considero tão grotesco como essa atividade. Há momentos de extrema poesia ao descrever a vida e carreira de Antonio Ordóñes e Luis Miguel Dominguín.
A morte onipresente é deveras cruel e é belissimamente descrita na dança de touro e toureiro, no olhar de “respeito” do humano pela “besta”, na raiva e dor incontidas nos olhos de um animal que é provocado, maltratado, perfurado e morto pelo bel prazer de uma tradição nefasta.
Outra obra que me chamou a atenção pelo mesmo fato é Moby Dick (1851) de Herman Melville, que voltou à minha mente por conta do recente filme No coração do mar. Clássico da literatura mundial, o livro fala sobre a caça desenfreada às baleias, sobretudo as Cachalotes, na primeira metade do século XIX.
Durante muito tempo relutei em ler o romance, pois não queria “me sangrar” ao ler as descrições sobre tais caças cruéis. Venci a luta interna para, então, deparar-me com uma belíssima obra de arte. Se no livro de Hemingway eu torci pelo touro, nesse, obviamente, torci pelas vitórias do monstro branco que assombrou os baleeiros.
De qualquer maneira, era impossível não se solidarizar com aqueles que morriam pelos ataques de Moby Dick, mesmo que esses tenham procurado pela morte ao quererem matar tal fera. As descrições das técnicas de caça, a procura incessante pela baleia e a felicidade por encontrar um espécime são descritas com beleza e chegam a convencer-nos de que aquela caça era realmente necessária. Alguns podem dizer que ela era necessária por conta da busca pelo óleo baleeiro, pois o petróleo ainda não havia sido descoberto como fonte de combustível, mas era possível tirar matéria-prima de outros lugares sem que essa caça sanguinária acontecesse.
De qualquer forma, a literatura está aí para mostrar todos os lados e condições possíveis da vida humana. O grotesco, que está aí para chocar, também pode ser descrito de uma forma que pareça bela. O contrário também: uma bela cena pode ser descrita de uma maneira grotesca, uma vez que, como já disse anteriormente, essas definições estão cada vez mais tênues nos tempos atuais. Não é preciso concordar com todos os pontos de vista, mas é preciso buscá-los e conhecê-los.
Não nos esqueçamos da bela e grotesca definição que Umberto Eco nos deu sobre a literatura, a de que ela nos ensina a morrer.