A literatura paraguaia e Roa Bastos, para começar

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A literatura paraguaia existe e Roa Bastos é o melhor exemplo disso – mas não o único.

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Vamos começar o texto com a seguinte pergunta: quantos escritores paraguaios você conhece ou leu? Muitos? Poucos? Nenhum? Mesmo sem saber a sua resposta, posso arriscar e dizer que o mais acertado é que tenha lido poucos ou nenhum – se leu muitos, me surpreenda e não me esconda nada, os comentários estão aí pra isso! A minha afirmação pode soar senso comum, afinal tenho como base a minha experiência. Eu, moradora da Tríplice Fronteira, demorei a descobrir os escritores paraguaios, até me fascinar por um deles. Estou falando de Augusto Roa Bastos, um dos melhores escritores latinos que passou pelas minhas mãos.

Senso comum ou não, uma possível verdade é que a produção literária no Paraguai sofreu muito com a história do país. Muitos de seus artistas da escrita foram exilados, durante a ditadura do século 20, e criaram suas obras longe de casa. Não bastasse isso, os leitores são principais responsáveis por manter a literatura paraguaia longe, afastada, apagada, como se não existisse. O fato é que ela existe. E merece nosso respeito. O foco hoje é Roa Bastos, mas seria injusto não mencionar outros nomes. A começar por Josefina Plá e Campos Cervera, nomes importantes que marcaram a chamada Geração 40. Outro aspecto que não pode ser esquecido é que a poesia é o gênero maior no Paraguai, convivendo em harmonia com o romance, contos e dramaturgia. Entre os escritores ainda vivos, o grande destaque é Juan Manoel Marcos, autor de Inverno de Gunter, traduzido para vários idiomas, inclusive português e russo (!).

Com tantos nomes (falei de apenas alguns), por que começar com Roa Bastos? Não existe nenhuma razão especial para ele ser o primeiro. Talvez por que tenha sido por ele que eu comecei e, encantada, decidi buscar outros autores.  Motivos para lê-lo, seja ele o primeiro ou não, porém, não faltam.

O clássico dos clássicos é Eu O Supremo,  uma “autobiografia” do ditador José Gaspar Rodríguez de Francia, que governou o Paraguai durante 30 anos. No livro, o governante aparece como uma figura política justa, que lutou pela independência paraguaia e sua autossuficiência, independente de relações exteriores. Roa Bastos escreveu em primeira pessoa, o que confere o ar todo diferenciado ao livro. Antonio Callado define a obra como “uma autobiografia escrita por outra pessoa”, o que demonstra a genialidade do escritor que, a partir das memórias de Francia, criou uma narrativa envolvente, fazendo com que o leitor se sinta realmente próximo do ditador incomum.

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Edição de Siglo Vinteuno Edtores

Para entender melhor, dá pra ler o que Callado escreveu na orelha de uma edição brasileira da obra:

“Francia, fundador do Paraguai, é realmente uma figura de estadista de molde tão incomum que, se imaginássemos outros Francias em mais três ou quatro de ‘nuestros países’, poderíamos imaginar uma América Latina bem diferente do que é, bem mais forte a seu modo, bem mais inventiva e original. Francia não queria que o Paraguai se parecesse com a Espanha, ou com a França, ou com a Inglaterra. Ele queria criar uma outra espécie de civilização nestas plagas. O Paraguai dos seus sonhos – e das suas realizações – era auto-suficiente, desconfiado em relação às grandes potências, altivo, acreditando firmemente na sua capacidade de criar algo novo.”

Eu O Supremo pode ser parte de uma trilogia sobre o monoteísmo do poder, unindo a história paraguaia às ditaduras. Os outros dois livros são Filho do Homem El Fiscal – sem tradução para o português por enquanto.

A influência política – não panfletária – pode ser notada ainda em Contravida, romance também escrito em primeira pessoa. O narrador conta a sua própria história, a de um homem, único presidiário sobrevivente de uma tentativa de fuga por um túnel que desabou. As sensações descritas fazem com que o leitor acabe torcendo pelo fugitivo, que, perdido e sem saber o que fazer, volta para a sua cidade natal, onde memórias se confundem com o presente, mostrando um cenário cativante, no sentido de querer continuar e terminar a leitura, para descobrir os segredos e o desfecho deste homem que não vive, nem sobrevive, está na “contravida”.

Nos contos, poemas e peças teatrais, e até mesmo nos romances, vemos um Roa Bastos preocupado em deixar narrados os costumes de seu país, mesclando o que seriam detalhes de uma literatura regionalista a elementos da “literatura universal”. Seu grande legado é formado por dezenas de obras literárias, através das quais é possível encontrar um escritor genial, ativo no cenário cultural de sua época, em uma luta para fazer com que o Paraguai e sua literatura fossem um dia reconhecidos.

Dê uma chance a Roa Bastos e à literatura paraguaia e descubra a riqueza poética do país que está aqui pertinho, geograficamente, mas distante em muitos sentidos.

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