Livro de câmera

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O narrador posicionado do “lado de fora” da história relata todos os acontecimentos da narrativa por meio de sua “câmera”, fazendo um exercício de troca de perspectivas comum nos romances policiais

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O mais comum em romances policiais é que haja um narrador posicionado do “lado de fora” da história. Ele ajusta sua “câmera” (e aqui peço licença ao leitor e à leitora para repetir o que fiz no meu texto anterior e fazer essa ponte entre literatura e cinema) para o que chamamos de focalização externa: relata apenas ações e os movimentos exteriores dos personagens.

Rubem Fonseca transcende essa fórmula ao colocar seu protagonista para narrar os acontecimentos de A grande arte. Mas o lance mais audacioso talvez não seja designar como narrador alguém que está do “lado de dentro” da história. A grande sacada é fazer com que Paulo Mandrake (protagonista) conte as histórias de outros personagens (Camilo Fuentes, Thales Lima Prado, Rafael) e modifique a chave de focalização da sua “câmera” para o modo variável. Um belo e audacioso recurso técnico, que faz do livro uma genial epopeia criminal, recheada de episódios e fabulações que tiram o fôlego do leitor. Pablo Villaça, em sua crítica sobre Os Oito Odiados, classifica o longa de Tarantino como um “filme de câmera”, no qual ele repete “informações já marteladas”, levando “o público a rever certas passagens a partir de pontos de vista diferentes” e antecipando “elementos que outros realizadores manteriam em segredo”. Se fosse possível, o romance de Rubem Fonseca também seria classificado da mesma maneira: “livro de câmera”.

Luiz Alfredo Garcia-Roza se utiliza do recurso mais conservador em Uma janela em Copacabana (mais uma leitura recente). Mas aborda a mudança de perspectiva, tornando-a parte da trama. Serena, da janela do seu apartamento, vê uma mulher despencar da sacada do prédio vizinho. Havia mais uma pessoa no local do crime. Assassinato ou suicídio? Numa tentativa de assumir o lugar do outro em busca de respostas, ela aluga o imóvel (que foi reformado e disponibilizado após a tragédia). Coloca-se na janela que dá para o seu quarto de vestir. Olhando o prédio onde mora, questiona-se quantas vezes foi observada trocando de roupa pela antiga moradora. Imagina-se olhando para si mesma do outro lado da rua.

Na primeira temporada da série True Detective, a polícia investiga o assassinato de uma mulher submetida a rituais satânicos. O crime é recorrente e já foi investigado pelos ex-detetives Martin Hart (Woody Harrelson) e Rust Cohle (Matthew McConaughey). Para tentar elucidar o caso, os novos investigadores requisitam a ajuda dos antigos parceiros. Eles são os únicos que vivenciaram aquelas atrocidades no nível em que elas ocorreram. Há pausas e divagações, nas quais a câmera é posicionada frente às piores fraquezas de cada um, conflitos internos que influenciaram no andamento das investigações.

O exercício da troca de perspectiva é bem interessante na ficção. Na vida real, ele pode ser difícil: colocar-se no lugar do outro antes de emitir algum tipo de opinião é das coisas mais inimagináveis. Vide a atual crise política brasileira.

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