Livros que não fazem pensar?

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Nenhum livro “nasce” sem razão de “ser”, sem inspiração em outros livros, em sua realidade, nas vivências do autor ou nos fatos conhecidos por ele

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Ilustração: autoria desconhecida

Uma crítica comum à literatura de best-seller é que ela seria de consumo fácil e conteúdo raso. Não tem valor artístico. Não tem profundidade. Não faz pensar. O enredo é claro, simples, objetivo. Não é preciso fazer deduções, estar por dentro do panorama político, social de uma época para compreender a trama. A transparência da linguagem compromete a beleza estética do texto. Para validar ou não essa crítica é preciso, primeiramente, definir o que se entende por literatura e qual seria o seu objetivo. Missão difícil, mas tentemos traçar alguns pontos de vista.

Durante muito tempo, a produção literária era produzida por e para a alta sociedade. Seguiam-se as regras clássicas, o decoro, temas importantes, personagens ilustres, referências históricas, mitológicas. O cenário mudou radicalmente, no mundo ocidental, com a invenção da imprensa e a tomada de poder pela burguesia, mais trabalhadora e menos culta que a aristocracia. Assim, do século XVIII para o XIX, a literatura se popularizou. A ampliação do público leitor transformou a demanda: exigia-se cada vez mais um entretenimento para os momentos de lazer, de temas que se assemelhassem ao cotidiano, para facilitar a identificação, com certo colorido aventureiro. A literatura tornou-se, então, mais comercial.

Impossível negar que houve uma queda em qualidade, até porque a produção também aumentou, em quantidade e variedade. Isso não significa que todos os autores antigos fossem necessariamente bons. E nem que todos os autores modernos/contemporâneos sejam necessariamente ruins. O que aconteceu foi que a importância do leitor cresceu de maneira bastante significativa. Agora, é o leitor quem dita as regras do jogo, é o público consumidor que escolhe o que quer ou não ler.

Só que a noção de literatura enquanto arte respeitada, de alto valor, não caiu totalmente por terra. E essa concepção, da crítica, da academia, convive por vezes de forma harmoniosa, por vezes em pé de guerra, com a valoração comercial da editora, que quer vender para o grande público, e do leitor comum, que quer apenas obter o prazer da leitura, sem refletir sobre os fins artísticos a que ela se propõe ou não. Nenhum dos lados está errado, posto que os objetivos são diferentes: a análise e a fruição literárias precisam coexistir. Equivocado talvez seja o julgamento de que existem livros que não fazem pensar.

Toda produção intelectual é contextualizada por sua época e seu meio. Nenhum livro “nasce” sem razão de “ser”, sem inspiração em outros livros, em sua realidade, nas vivências do autor ou nos fatos conhecidos por ele. Portanto, toda obra é rica em reflexões, pois ela diz sobre seu tempo, sua sociedade, suas ideologias, etc. Se diz de maneira interessante ou pedante, bem feita ou mal acabada, é outra história. Mas, mesmo que um livro seja, usando o termo grosseiro, ruim, há algo que se extrair dele. Nem que seja algo negativo, nem que seja pelo “mau exemplo”. Da mesma maneira, pode-se ler um autor consagrado sem prestar atenção na riqueza de detalhes da obra. É a maneira de ler, crítica ou desinteressada, que muda tudo. Pensar sempre é possível, a partir de qualquer matéria.

Igualmente falacioso é o argumento de que alguém não gostou de um livro porque não o entendeu. Gostar não é compreender. Tampouco compreender é gostar. Gosto pessoal é algo indiscutível, que não tem valor crítico. O juízo de gosto, por nossa inatingível imparcialidade completa, muitas vezes se mistura ao juízo de valor. No entanto, trata-se de julgamentos diferentes. Gosto não se discute. Qualidade sim.

Talvez devêssemos simplesmente parar de complicar as coisas e voltar à ingenuidade infantil, em que aprendíamos com os livros sem sequer nos darmos conta disso. A consciência certas vezes mais parece uma maldição que nos faz questionar tudo. Já que não se pode retroceder, a solução pode ser encarar essa consciência crítica pelo lado positivo, de modo que ela nos ajude a expandir nossos horizontes e destruir nossos preconceitos.

 

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