Lolita e Humbert: amor, horror ou humor?

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Afinal, Lolita, de Nabokov, trata de um tema espinhoso com amor, horror ou humor?

Author Vladimir Nabokov writing in a notebook on the bed. (Photo by Carl Mydans//Time Life Pictures/Getty Images)
Lo-li-ta. Até mesmo as três sílabas que formam seu apelido já se derramavam como um bálsamo sobre as feridas espirituais do delicado e criminoso padrasto que se acercava dela. A língua desce lânguida pelo céu da boca, nas sílabas iniciais, por duas vezes, culminando de modo surdo em seu encontro com os dentes dianteiros, num estalido: tá!
Lolita, a menina cuja alcunha dá título ao polêmico romance de Vladimir Nabokov (1899-1977), nos é mostrada apenas através dos olhos do narrador, um sujeito ridículo desde o nome até as mais íntimas características psicológicas. Ele se chama Humbert Humbert, assim repetido mesmo. Esgueira-se pelas praças, postando-se próximo a balanços e escorregas, além de se enfiar em ônibus repletos de colegiais – tudo isso para simplesmente curtir a proximidade daquelas a quem denomina “ninfetas”: garotas de oito a 14 anos.
H.H. fica fascinado pela personagem-título ao se hospedar na casa da mãe dela, Charlotte Haze, com quem inicia um relacionamento só visando manter proximidade com a menina Dolores. Dolly, Lola, Lô, Lolita: ela se apresenta a ele como uma angustioso objeto de adoração, com seus trejeitos juvenis, displicentes, travessos. Enquanto isso, universitárias e mulheres maduras lhe afiguram repugnantes – apesar de lhes reconhecer certa beleza, sente-se incapaz de ter verdadeira atração por qualquer uma delas.
A garota raptada pelo padrasto é vista, por este, como a verdadeira raptora. Pois ela lhe domina os pensamentos, atormentando-o, até furtando ou extorquindo-lhe dinheiro. Porém, apesar de só conhecermos a versão que Humbert dá aos fatos, não há como ter alguma empatia por ele. Seu sofrimento claramente não é infligido pela frágil Lolita – impotente perante o opressivo mundo adulto – mas pela própria psicologia humbertiana, amargurada por vivências traumáticas e tendências doentias. Suas “ninfetas” idolatradas são representações mentais da menina Annabel, por quem se apaixonara quando criança e que – já adulto – tentava ressuscitar por meio da visão de outras.
Lolita foi a substituta perfeita, mas, ainda assim, mera substituta. O tempo passara, as reais possibilidades de felicidade se foram: nada volta na vida. Humbert, preso a uma época pretérita, nunca alcança a plena satisfação, morta com Annabel. Assim ele se torna cativo duma ânsia da qual não consegue escapulir, pois impossível de saciar. A dívida que a vida lhe tem jamais pode ser sanada, pois ele não é mais o garoto apaixonado, Annabel não o namora, nem o mundo é o mesmo. Simulacros daquele momento perdido são sempre escamoteações, paliativos amargos.
Apesar dos aspectos tristes da história, a perversão de Humbert tende a ser abordada no livro duma maneira tragicômica, sendo comum que algum humor negro se insinue pelas páginas desse romance, lançado em 1955. É verdade que sentimos o drama do narrador – atormentado por sua obsessão – e condoemo-nos pela sina de pequena Dolores (aos 12 anos vítima dum adulto que lhe rouba a infância); mas o risível de algumas situações também aparece às vezes ao vislumbrarmos as contradições e hipocrisias sociais do universo em que os personagens transitam.
A formação escolar das meninas, visando torná-las prendadas, preciosas aos olhos de seus futuros maridos; as convenções sociais vazias; as relações de vizinhança e parentesco com suas exigências de adequação pessoal ao meio: tudo isso aparece no livro e, não raro, nos leva a pensar que a sociedade estadunidense como um todo é tão ridícula e repulsiva quanto o pervertido Humbert Humbert.

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