Federico García Lorca, um poeta que bebeu no surrealismo, era homossexual, com ideias de cunho socialista e que morreu fuzilado
João Cabral de Melo Neto, que viveu muitos anos na Espanha, já dizia: “Cada autor é como um diamante: pode-se pegar nele por vários lados. Lorca, para mim, é um poeta genial a partir do Romanceiro Gitano e do Cante Jondo. É que, mesmo amável – não sei! – me fascina…” (Diário de Lisboa, 1966) Essa “fascinação” estava intimamente ligada ao ambiente Andaluz com sua inigualável geografia, sua música, sua arquitetura, e à paixão flamenca – verdadeiras preciosidades para Lorca e para o poeta brasileiro.
Pois bem, Federico García Lorca nasceu em Fuente Vaqueros, em 5 de junho de 1898. Na adolescência, muda-se com a família para Granada, retomando os estudos no Colégio Secundário Sagrado Corazón de Jesús. Pouco tempo depois, ingressa na Universidade para estudar Direito e Letras. Ao entrar no mundo acadêmico, o círculo de amizade de Federico se amplia, ele convive com personalidades do meio cultural da época, como Salvador Dalí, Luís Buñuel e Rafael Alberti.
É de 1917 sua primeira publicação: Fantasía Simbólica. No ano seguinte, lança Impressiones Y Paisajes. O escritor espanhol escreve versos, textos críticos e teatrais. A peça El maleficio de la mariposa estreia em 1920 no Teatro Eslava, sem muito sucesso. Lorca, porém, não se abala; sua vida acadêmica, cultural e literária permanece intensa. Dentre tantos títulos, merece destaque a trilogia lorquiana composta por Bodas de sangre (1932), Yerma (1934) e La casa de Bernarda Alba (1936).
Seus livros Romancero Gitano e Poeta en Nueva York provavelmente sejam os mais representativos. Em Romancero Gitano, de 1928, a linguagem e a plasticidade do texto são inconfundíveis. Constituído de 18 romances, essa obra une a linguagem narrativa com a lírica, mistura a perfeita tradição com elementos vanguardistas e faz uma reflexão sobre o povo da Andaluzia, os ciganos, que são retratados com seus modos exóticos e livres, enfim, Lorca explora a riquíssima cultura desse povo.
Em 1929, o poeta viaja para os EUA para estudar inglês na Universidade de Columbia e também para fugir de algumas decepções profissionais e pessoais; entre elas, o rompimento de sua amizade com Salvador Dalí, que se especula ter sido um grande amor não correspondido do poeta. Lorca estava bastante descontente, principalmente com a sociedade que não reconhecia como lícita a sua opção sexual. É nessa atmosfera que o autor começa a escrever Poeta en Nueva York, livro que só foi publicado após a sua morte. Em tal obra, com fortes traços surrealistas, Federico faz ponderações sobre a comunidade americana e sua industrialização, sobre seu exacerbado capitalismo e, também, sobre a resultante alienação humana nesse sistema; enfim, critica o modus vivendi dos Ianques. Seu olhar se volta para as minorias do país; o poeta ficou horrorizado com o tratamento dado aos negros. De certa maneira, Lorca identificava-se com essas pessoas discriminadas, pois de preconceito ele entendia bem. Em Poeta en Nueva York, Federico sugere que a justiça, o amor, a liberdade e a igualdade sejam os novos valores dos homens. No poema Aurora, que foi musicado por Chico Buarque e Fagner, Lorca faz uma contundente crítica a Nova York. Lê-se:
A AURORA
A aurora de Nova York tem
quatro colunas de lodo
e um furacão de negras pombas
que chapinham as águas podres.
A aurora de Nova York geme
pelas imensas escadas,
buscando entre as arestas
nardos de angústia desenhada.
A aurora chega e ninguém a recebe na boca
porque ali não há manhã nem esperança possível.
Às vezes as moedas em enxames furiosos
tradeiam e devoram meninos abandonados.
Os primeiros que saem compreendem
com seus ossos
que não haverá paraíso nem amores desfolhados;
sabem que vão ao lodaçal de números e leis,
aos brinquedos sem arte, a suores sem fruto.
A luz é sepultada por correntes e ruídos
em impudico reto de ciência sem raízes.
Pelos bairros há gentes que vacilam insones
como recém-saídas de um naufrágio de sangue.
Como já foi dito, o poeta identificava-se com as minorias, até mesmo por sua condição sexual. Ele nunca declarou abertamente sua homossexualidade, mas também nunca a escondeu, ao menos para os mais chegados. Diferente de alguns homens de seu tempo, ele não mantinha relações de fachada com mulheres. Assim, foi inevitável que as reações dessa sociedade hipócrita, intolerante e preconceituosa influenciasse em sua obra e em sua personalidade. As convenções sociais acabavam, muitas vezes, levando-o a um estado de depressão e angústia, visto que seus romances, quase sempre, ocorriam com homens que mantinham uma vida dupla. Por isso mesmo, os sonetos escritos nos dois últimos anos de sua vida, de preponderante nota erótica e versos homoafetivos mais explícitos, foram publicados tempos depois de sua morte. É a partir da década de 80, do século XX, que a revista madrilenha ABC divulga os Sonetos de Amor, composto por 11 poemas. No Brasil, a edição foi traduzida com o título de Sonetos do Amor Obscuro.
Nesse livro, com ecos da tradição literária espanhola, o poeta fala de relações e sentimentos vivenciados na clandestinidade. O leitmotiv dos sonetos é o amor, mas não o sentimento “tradicional”, e sim do amor entre pessoas do mesmo sexo. Lorca escreve sobre a insatisfação e a necessidade de manter seu real afeto na obscuridade, uma vez que era considerado imoral e ilegítimo. Por isso mesmo, a linguagem desses sonetos é contornada com belíssimas metáforas, com figuras bastante sugestivas, deixando sua mensagem de amor no limiar da revelação ou até mesmo declarada. Em Chagas de Amor, Lorca escreve sobre o tormento do secreto sentimento amoroso:
“São grinaldas de amor, chão de ferido/ onde me deito e sonho-te a presença/ nas ruínas de meu peito já destruído./ E embora eu aja na maior prudência,/ me dá teu coração vale estendido/ com cicuta e paixão de amarga ciência.” (página 27)
Em Lembrança do Amor, o poeta fala a respeito do abandono e de sua escolha passional, que acaba tornando-o um solitário:
“Não partas com teu reflexo/ Deixa-o espelhado em meu peito,/ branca cereja tremendo/ em martírio de janeiro/ Entre mim e os mortos tenho/ um muro de pesadelos./ Dói a dor do lírio fresco/ para um coração de gesso.” (página 61)
No Soneto da Grinalda de Rosas, Federico escreve sobre o desejo:
“Goza a paisagem que é minha ferida,/ quebra juncos e arroios delicados./ Sangue em coxa de mel bebe em seguida./ E, pronto! Agora unidos, enlaçados,/ boca rota de amor e alma mordida,/ o tempo nos encontre destroçados.” (página 23)
Mas é no poema O amor dorme no peito do poeta que o eu-lírico é mais direto, dirigindo-se a um interlocutor masculino. Ele diz:
“Tu nunca entenderás quanto te quero/ porque vives em mim, adormecido./ Por vozes de aço agudo perseguido,/ dentro de mim, em pranto, eu te encarcero.” (página 41)
Lorca, além de homossexual, trazia consigo outra característica que o tornava pouco tolerado no ambiente político da época: tinha ideias de cunho socialista. Federico era simpatizante do movimento Frente Popular Marxista, que era combatido fortemente pela Confederação Espanhola de Direito Autônomo (CEDA), de ideologia clerical e conservadora. Então, no dia 16 de agosto de 1936, quando estava estourando a Guerra Civil Espanhola, Ramon Ruiz Garcia, parlamentar da CEDA, prende e conduz o poeta ao Gobierno Civil. Ramon alegou que a obra de Lorca era subversiva, perigosa e socialista, além do poeta ser homossexual. Para uma sociedade conservadora e homofóbica, o paredão parecia ser inevitável. E foi. Federico é fuzilado em Viznar, em 19 de agosto de 1936.
O biógrafo Ian Gibson acredita, todavia, que o motivo pelo qual o poeta foi morto, era de cunho muito mais pessoal do que político. Gibson escreve: “Ele era invejado por seu talento, tinha dinheiro e sucesso. Quando os militares assumiram o poder, sua execução era apenas uma questão de tempo. Um liberal, homossexual de sucesso não poderia ser tolerado na Espanha do ditador Franco.”
A obra de Federico García Lorca foi por muito tempo censurada em seu país. O governo ditatorial de Francisco Franco não permitia a divulgação da literatura do poeta. O corpo baleado de Lorca, o corpo jogado numa vala comum, o corpo desaparecido não foi o suficiente para silenciar a sua voz. Federico García Lorca era um homem que não conhecia fronteiras; e a morte, certamente, não foi uma delas.
Referências:
GIBSON, Ian. Federico García Lorca- A Biografia. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2014.
LORCA, Federico García. Antologia Poética. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2005.
LORCA, Federico García. Sonetos do Amor Obscuro. Segunda edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.