Lúcia Bettencourt resenha seu conto predileto: ‘La isla a mediodía’, de Julio Cortázar

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Foto-Lucia-PBUma resenha de um conto de Julio Cortázar deveria ser uma aula de como se construir um conto. A narrativa curta tem regras próprias, mas elas parecem se reinventar a cada criação sua. Como colocar sob os mesmos parâmetros um conto mais longo, como Autopista del sur e este breve La isla a mediodía? Enquanto um reinventa a civilização e a barbárie, o outro nos fala da possibilidade de realização pessoal.

Cortázar joga com ambivalências já a partir do título. O que significa esta ilha ao meio-dia? A ilha nos leva a uma questão de isolamento, sem dúvida, mas esta é também uma ilha física, localizada no Mar Egeu, especial por ter um formato de tartaruga saindo das águas, e que se singulariza por aparecer três vezes por semana, sempre ao meio-dia. E meio-dia pode significar muitas coisas diferentes. Na França, o “midi” significa o Sul, mas também é uma metáfora para o meio da vida, aquele momento em que se faz um balanço daquilo que já foi realizado em contraposição aos sonhos juvenis. Trata-se daquele momento quando o desejo de mudança pode chegar e as tentações de virar a mesa e recomeçar de maneira diametralmente oposta podem acontecer.

Se a ilha é literal, aquela que é avistada sempre no mesmo horário quando o avião que faz a rota Roma-Teerã a sobrevoa, ela também é uma outra ilha, aquela que mal se avista nas viagens de volta, às oito da manhã. Uma ilha cujo formato, uma tartaruga dourada, pode remeter ao mítico símbolo, já que a tartaruga é um dos mais antigos símbolos, identificada à Mãe Terra, à proteção, à cura.

Cortázar constrói sua história tecendo entre esses três eixos: solidão, espaço mítico e o momento de mudança. Marini, um entediado comissário de bordo avista a ilha desconhecida pelo oval da janela do avião e ela o fascina imediatamente. Tratava-se de uma “ilha pequena e solitária”, uma “ilha rochosa e deserta” que logo desaparece de seu campo de visão, mas permanecerá em sua memória e a expectativa de tornar a vê-la o acompanha em cada viagem subsequente. Uma das ilhas gregas, seu nome talvez fosse Horos, especula o comissário, abrindo mais caminhos a serem explorados (Horos, uma variante de Hórus, remete ao deus egípcio do Dia). Logo é corrigido, Xiros, chama-se a ilha. Poderíamos especular as ressonâncias com a palavra Kairos, que se refere ao tempo não cronológico, um tempo potencial e eterno, não-linear.

A cada parágrafo intensifica-se o contraste entre a vida deste Ícaro/Marini, voando ao sol do meio dia e o Marini simplesmente humano, cada vez mais entediado e solitário, e as referências temporais cada vez são mais vagas e imprecisas.

“Tudo era falso na visão inútil e recorrente;”, alerta-nos o autor, e continua: “salvo, talvez, o desejo de repeti-la, a consulta ao relógio de pulso antes do meio-dia, o breve, pulsante contato com a deslumbrante franja branca à borda de um azul quase negro, e as casas de onde os pescadores mal levantariam os olhos para seguir a passagem dessa outra irrealidade”. O leitor, desejoso de acompanhar a história de Marini e de sua conquista da ilha quase ignorada, serve de testemunho à rotina asfixiante do rapaz, iluminada apenas pelo desejo cada vez mais intenso pela ilha. Levado numa aparentemente inocente digressão, o leitor é apresentado a uma jovem grega, de cabelos vermelhos, que menciona seu avô em Odos e suas dores de garganta inexplicáveis. Ao mesmo tempo, os detalhes da vida cada vez mais solitária de Marini, a solidão e a incompreensão que o rodeiam o vão tornando cada vez mais semelhante a uma ilha. É importante notar que, Marini é um ser ambivalente, ligado ao mar pelo nome e ao céu pela profissão, tal como a ilha a meio-dia é um anfíbio, capaz de viver em dois ambientes ao mesmo tempo.

Finalmente cremos acompanhar Marini em sua chegada na ilha, que o invade e possui oferecendo-lhe o gozo que suas relações pessoais lhe negavam. Marini percebe que “de alguma maneira ia ficar para sempre na ilha’. Quando julgamos que o comissário finalmente encontra sua paz, o ruído do avião sobrevoando a ilha se faz ouvir. Marini decide fechar os olhos para “não se deixar contaminar pelo pior de si mesmo que uma vez mais ia passar sobre a ilha”.

As mudanças, as reviravoltas, os episódios habilmente traçados se reúnem num desfecho melancólico onde a solidão pesa mais do que a felicidade. Chamado pela “boca repugnante” Marini é arrancado de sua “pequena felicidade”. Os leitores, porem mergulham num mar de perplexidades e reavaliam os episódios narrados procurando as chaves para esta reflexão sobre o destino, o valor da liberdade, a possibilidade de realização pessoal nos dias de hoje, e, ainda, numa bela reflexão sobre o conceito de tempo.

Escrevo esta resenha contemplando as águas do Mar Mediterrâneo, mergulhando meus olhos no azul quase negro das águas, que se transmudam em verde, transparentes, sedutoras. Minha mente vagueia e se descaminha entre as ilhas que posso ver enfeitando as inúmeras enseadas da costa. Sobre minha cabeça passa um avião e me dou conta de que Cortázar soube transpor, em palavras, o contraste entre uma natureza quase agreste e essa civilização turística que transforma estes pequenos refúgios naturais em passarelas para hordas cansadas e suarentas, que nada veem e tudo deturpam, misturam, desvirginam. Onde encontrar refúgio e abrigo contra Cronos e sua impiedosa monotonia e massificação, se não tivermos o mapa da literatura? Leiamos, então. Sejamos livres e eternos.

 

Trecho do conto ‘La isla a mediodía’, de Julio Cortázar

Com os lábios grudados no vidro, sorriu pensando que poderia subir até a mancha verde, que entraria nu dentro do mar das enseadas do norte, que pescaria polvos com os homens, entendendo-se por meio de risos e sinais. Nada foi difícil uma vez resolvido, um trem noturno, o primeiro navio, outro navio velho e sujo, a escala em Rynos, a negociação interminável com o capitão do barco, a noite no convés, grudado às estrelas, o sabor do anis e do carneiro, o amanhecer nas ilhas. Desembarcou com as primeiras luzes e o capitão o apresentou a um velho que parecia ser o patriarca. Klaios tomou-lhe a mão esquerda e falou lentamente, olhando-o nos olhos.

 

Trecho do conto ‘Toques’, de Lúcia Bettencourt

Lembrava-se de quando, nas primeiras noites juntos, eles dormiam tão unidos que seus corpos nus amanheciam colados, e eles precisavam ir se separando devagar, para não doer. Hoje já nem saberiam mais estar tão próximos. Mesmo nos momentos de maior ternura, seu braço parecia sobrar, não sabia onde colocá-lo. E o ar que ele aquecia ao respirar não lhe oferecia suficiente oxigênio, e precisava chegar sua cabeça para trás e inalar sôfrega, ansiosa.

 

Lúcia Bettencourt, carioca, costuma dizer que vive por escrito. Seus contos já receberam os prêmios Sesc, Josué Guimarães e Osman Lins; traduzidos para o inglês, se acham publicados nas revistas The Drawbridge, Words Without Borders, Brasil/Brazil , The Dirty Goat e Review. Seus livros, publicados pela Record, chamam-se Linha de sombra, O amor acontece e A secretária de Borges, onde se encontra o conto Toques. Também é autora de livros infantis, publicados pela editora Escrita Fina: O sapo e a sopa; A cobra e a corda e Botas e bolas. Seu livro O banquete: uma degustação de textos e imagens recebeu o prêmio de ensaios da Academia Brasileira de Letras. Em breve sairá seu próximo romance, sobre a morte de Rimbaud.

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