“O que é o para sempre senão o existir contínuo
e líquido de tudo aquilo que é liberto da contingência,
que se transforma, evolui e deságua sem cessar
em praias de sensações também mutáveis?”
Quando me colocam a famosíssima pergunta que todos os escritores um dia têm de responder (quais são suas maiores influências?), apesar de me entreter citando nomes diferentes numa espécie de shuffle literário, um nome é presença certa nas minhas listas de preferência: Lúcio Cardoso. Que, aliás, completaria 101 anos de vida neste mês, precisamente no dia 14 de agosto.
É verdade que muitos livros me marcaram. No entanto, até hoje é (ao menos está) insuperável a impressão que me causou Crônica da casa assassinada (1958). Admirador que sou das estripulias formais do Faulkner (inevitável comparação), foi irresistível quando me deparei com aquele monumento polifônico que é Crônica da casa assassinada. Pois não só há invenção e conteúdo – aquele livro é de uma poesia que me encanta.
Utilizo a poesia em termos amplos. É possível reparar que cada capítulo, na verdade cada frase, palavra, cada detalhe foi pensado e repensado e escrito e reescrito. O que me impressiona é o cuidado formal e a liberdade lírica do Lúcio Cardoso naquele livro. E nesse ponto faço uma digressão (e outra inevitável comparação) importante: é fato que também sou obcecado por Lavoura Arcaica, do Raduan Nassar. E compará-los seria besteira, pois cada livro tem seu momento na vida das pessoas. Mas queria destacar que, se ambos possuem o equilíbrio entre forma e liberdade, por vezes o Lúcio me captura maior atenção por sua capacidade de estruturação e articulação de enredo. Quer dizer, se a história do Raduan é uma espécie de recuperação da parábola bíblica do retorno do filho pródigo, o enredo de Lúcio é multifacetado, tentando dar conta de uma ruína que encontra metáfora na fazenda dos Menezes justamente para expor a ruína não apenas de uma família, mas de um momento histórico.
Não estou criando competições tampouco declarando superioridade de um autor em relação a outro. Quero apenas colocar o que há de encantador (dentre tantos outros elementos) na obra de Lúcio Cardoso, uma vez que Raduan Nassar está amplamente divulgado por esses tempos. E, ademais, sou a favor de que livros sejam lidos, principalmente livros que, apesar do calibre, ficam esquecidos pelos cantos empoeirados do tempo. Não – não estou numa catequização de leitores. Talvez de literatura, mas não de leitores. Mas, acima de tudo, gosto de compartilhar as coisas que admiro.
Minha admiração estava mais que declarada quando escrevi o conto Nina amanhã, que, como disse, é livremente inspirado na personagem vértice do Crônica da casa assassinada. Lembro-me, no entanto, de um evento anterior, pelos idos de 2008, quando foi realizada a solenidade do Prêmio Sesc de Literatura, que eu havia ganho na categoria de contos com meu livro Beijando Dentes. A situação era ímpar: de repente aquelas histórias que eu escrevia no silêncio do meu quarto não só tinham virado livro como me colocaram sentado no auditório da ABL em frente a um público, ao qual eu deveria dizer algumas palavras. Em meio ao nervosismo, tropecei em palavras, esqueci agradecimentos, mas acabei por citar meus autores favoritos, que, afinal, eram minhas companhias até aquele momento. Dentre eles, Lúcio Cardoso. A paraninfo (por assim dizer) da premiação daquele ano era a Nélida Piñon, que, ao final, me procurou para se dizer encantada com o fato de alguém tão jovem conhecer a obra do Lúcio.
Da rápida conversa com a Nélida, que deu concretude a um autor que para mim existia apenas enquanto livro, recupero a sensação de perda que decorre: após um derrame cerebral que o impediu de continuar escrevendo, Lúcio confessou a angústia que sentia por ter tantos livros na cabeça e não poder coloca-los no papel. Angústia que, como leitor, compartilho. Uma pena. Em 1968, seis anos após esse AVC, Lúcio morreu. Mas eis a magia da literatura: seus livros ficaram.