O que aproxima ou distancia as madames de Gustave Flaubert e de Choderlos de Laclos?
Proponho a comparação de duas personagens-chave de clássicos da literatura francesa que parecem nada ter em comum a não ser um final trágico: Madame de Merteuil, de As Ligações Perigosas, escrito por Choderlos de Laclos, publicado em 1782, e Madame Bovary, do romance de mesmo título, por Gustave Flaubert, em 1857. Ambas as obras são frequentemente readaptadas e amplamente difundidas. A primeira, obra-prima do romance libertino; a segunda, marco inaugural da escola realista. Seus autores expõem as hipocrisias da sociedade aristocrática e da burguesa, respectivamente, por meio de personagens fortes e marcantes. Dentre eles, duas madames muito distintas, algozes e vítimas de seus próprios destinos. Vamos a elas.
Madame de Merteuil, marquesa, é uma viúva respeitável da alta sociedade parisiense, que desfruta, na clandestinidade, de uma vida de prazeres, mantendo amantes e apostando conquistas. Ela se diverte, em especial, com os jogos de manipulação cujo parceiro é seu ex-amante e grande amigo, visconde de Valmont. Ao longo do romance, de caráter epistolar, a marquesa perverte sua jovem prima, Cécile, para se vingar de um inimigo (possivelmente um ex-amante), noivo desta, engana a mãe da menina, seduz seu primeiro namorado, faz um oficial ir preso por tentar seduzi-la, depois de ter conseguido passar
uma noite com ele, como queria, e ainda compromete seu parceiro de aventuras libertinas, o grande sedutor Valmont, contrariada pelo fato de ele ter se apaixonado por uma beata. Merteuil não tem limites para obter o que deseja e não cede em absoluto a ninguém. Como consequência de seus atos, vê Valmont morrer em um duelo provocado por ela, não sem antes entregar suas cartas comprometedoras ao rival, que trata de divulgar seu conteúdo. Desmoralizada socialmente, perde toda sua fortuna e foge para longe; as notícias são que contraiu uma doença que deformou seu rosto, expondo a monstruosidade interior, segundo reflexão de sua prima.
Madame de Bovary é uma jovem sonhadora, leitora voraz de romances românticos, que vive no campo e sonha com o luxo da capital e uma grande paixão. Ela acredita que encontrará a felicidade após o casamento com Charles Bovary, o que não acontece. Decepcionada com o tédio da rotina rural e com a falta de ambição de seu marido, ela se entrega a dois amantes, um sedutor que se aproveita de sua ingenuidade e um jovem romântico com quem se identifica. Abandonada duplamente, não encontra consolo na filha, com quem não cria laços, nem nos bens materiais que adquire compulsivamente. Mergulhada em dívidas e desilusões, ela se mata com veneno.
O contexto de cada obra deve ser considerado. As Ligações Perigosas pertence à tradição do romance de libertinagem. Neste, os personagens, membros da aristocracia, vivem intrigas sociais, jogos de sedução e conquistas desafiantes. Para os libertinos, o que importa é a busca pelo prazer; o amor não passa de frivolidade. Seus gestos são dissimulados, calculados, jamais revelam seus verdadeiros sentimentos; o ambiente é artificial, representado pelos grandes salões luxuosos e luxuriosos, assim como a linguagem, elegante e velada. Dispondo de tempo livre e recursos financeiros, os libertinos, desprovidos de obrigações que não a participação nos eventos sociais, dispõem de condições para tentar fugir do tédio se entregando, na clandestinidade, a uma vida mundana de prazeres. Uma mulher, nessa sociedade, precisava ser bastante dissimulada para obter sua satisfação pessoal e continuar sendo respeitada, como a Marquesa de Merteuil.
Da aristocracia improdutiva passa-se à burguesia hipócrita em Madame Bovary. Flaubert denuncia os costumes da sociedade burguesa num cenário de personagens interesseiros e difamatórios. Seu estilo realista, por meio do qual não poupa descrições de paisagens e de personagens, cujos pensamentos acompanha com o discurso indireto livre, torna a crítica social mais acentuada. Os habitantes da fictícia Yonville-Abbaye pensam apenas em seus próprios interesses e não parecem se importar com os dramas alheios; se possível, aproveitam-se para obter alguma vantagem deles. Nessas circunstâncias, Emma é presa fácil de sedutores ardilosos e agiotas mal intencionados, tendo em vista sua ingenuidade campestre.
Numa época em que a mulher não tinha espaço de expressão, podia optar-se pela dissimulação ou pela ilusão, ambas atitudes arriscadas. Madame Bovary e Marquise de Merteuil representam a dupla face da conduta feminina durante os séculos XVIII e XIX. Ambas exageram na dose de seu sadismo ou de seu romantismo, na tentativa de levar a vida como querem, livremente ou como nos romances. Suas expectativas, porém, não correspondem à realidade, seus planos não saem de acordo com o previsto, porque é difícil lidar com os sentimentos alheios, além dos próprios. Assim, as duas terminam mal, em parte por uma hipocrisia social que não lhes permitia fruir a vida, em parte por sua própria conduta irresponsável. Sem tomá-las como exemplo para o panorama contemporâneo, arrisco-me a deixar apenas uma reflexão final: será que é melhor encontrar um fim trágico após uma vida de prazeres ou uma vida de ilusões, isto é, mais vale ser algoz ou vítima do jogo social?